{"id":26265,"date":"2019-05-26T00:06:52","date_gmt":"2019-05-26T03:06:52","guid":{"rendered":"http:\/\/mapadacachaca.com.br\/?p=26265"},"modified":"2024-02-06T06:08:59","modified_gmt":"2024-02-06T09:08:59","slug":"harmonizacao-com-cachaca-e-chocolate-arte-dramatica","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/mapadacachaca.com.br\/artigos\/harmonizacao-com-cachaca-e-chocolate-arte-dramatica\/","title":{"rendered":"Harmoniza\u00e7\u00e3o com cacha\u00e7a e chocolate \u00e9 uma arte dram\u00e1tica"},"content":{"rendered":"\n

Cacha\u00e7a e chocolate prov\u00eam de contextos distintos. Mas o encontro de suas personalidades contrastantes pode ser uma cena surpreendente. Maur\u00edcio Ayer descreve a harmoniza\u00e7\u00e3o com cacha\u00e7a e chocolate como uma arte narrativa e coloca essa obra em pr\u00e1tica combinando cacha\u00e7a com chocolate.<\/h2>\n\n\n\n
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\u2013 Opa, bora harmonizar cacha\u00e7a com chocolate?<\/p>\n\n\n\n

\u2013 Olha, Felipe\u2026 vou ter que pensar muito, mas acho que sim\u2026<\/p>\n\n\n\n

\u2013 A P\u00e1scoa t\u00e1 a\u00ed\u2026<\/p>\n\n\n\n

\u2013 Com um argumento t\u00e3o forte, n\u00e3o vejo como recusar\u2026<\/p>\n<\/blockquote>\n\n\n\n

Assim rumei para a sede do Mapa da Cacha\u00e7a<\/a>, no Pacaembu, onde a cacha\u00e7a enfrentaria o chocolate em monumental contenda. Felipe Jannuzzi, pelo Mapa, forneceu a casa e a cacha\u00e7a, e a revista Prazeres da Mesa, na pessoa do jornalista Tulio Silva, entrou com o chocolate. Com as bocas, l\u00ednguas e o justificado bom humor entramos o mixologista Rodolfo Bob e este etilista que vos escreve.<\/p>\n\n\n\n

A proposta: juntar chocolates com diferentes teores de cacau com algumas cacha\u00e7as armazenadas em diferentes madeiras, al\u00e9m de uma branca. E ver no que d\u00e1.<\/p>\n\n\n\n

O encontro tinha ares experimentais. Mais que tirar julgamentos ou certezas, a ideia era sair dali com perguntas saborosas o suficiente para inspirar outros experimentos, que nos fa\u00e7am avan\u00e7ar. Tudo pelo progresso da ci\u00eancia. E nossa \u201cci\u00eancia\u201d s\u00f3 pode se pautar pelo bin\u00f4mio saber-sabor: o conhecimento que leva a aprofundar o deleite da degusta\u00e7\u00e3o; o demorar-se no gosto como \u00fanica maneira de ser transformado pela experi\u00eancia, sabendo mais do que se sabia antes.<\/p>\n\n\n\n

O Felipe fez um breve e fiel relato de nosso passeio explorat\u00f3rio pela mesa do Mapa<\/a>. Queria acrescentar umas reflex\u00f5es. Porque, em dado momento, nos vimos em meio a uma pol\u00eamica. Afinal, dever\u00edamos seguir uma metodologia \u00fanica e obrigat\u00f3ria para toda a sess\u00e3o de harmoniza\u00e7\u00e3o? Caso afirmativo, que tipo de conclus\u00e3o esperar?<\/p>\n\n\n\n

Metodologia do experimento: como harmonizar cacha\u00e7a com chocolate?<\/h3>\n\n\n\n

A pol\u00eamica se colocou entre duas alternativas. Uma seria impor as mesmas condi\u00e7\u00f5es para cada harmoniza\u00e7\u00e3o. Dever\u00edamos morder o chocolate, deix\u00e1-lo preencher a boca, ent\u00e3o sorver a cacha\u00e7a e atentar a cada sensa\u00e7\u00e3o produzida, at\u00e9 engolir a mistura e esperar os efeitos se extinguirem. A outra hip\u00f3tese era a de n\u00e3o ter nenhuma constante no processo, ou seja, deixar o car\u00e1ter explorat\u00f3rio da proposta correr sem freios.<\/p>\n\n\n

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\"weber-haus-extra-premium-6-anos\"
Harmoniza\u00e7\u00e3o de cacha\u00e7a com chocolate de diferentes concentra\u00e7\u00f5es de cacau. O amargo casou bem com cacha\u00e7a extra-premium envelhecida em carvalho e b\u00e1lsamo<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n

A primeira hip\u00f3tese, a de manter as condi\u00e7\u00f5es de degusta\u00e7\u00e3o est\u00e1veis, torna poss\u00edvel a compara\u00e7\u00e3o. A segunda, se n\u00e3o permite comparar, se aproxima da situa\u00e7\u00e3o real das pessoas quando provam a combina\u00e7\u00e3o, cada hora \u00e9 de um jeito.<\/p>\n\n\n\n

Do ponto de vista das conclus\u00f5es, a primeira deveria apontar para aquelas combina\u00e7\u00f5es mais certeiras, que dependem menos de fatores secund\u00e1rios. J\u00e1 a segunda aponta para um monte de hist\u00f3rias mais compridas, tipo: olha, esse chocolate e essa cacha\u00e7a s\u00e3o muito intensos, n\u00e3o seria o caso de tomar um caf\u00e9 depois? Ou: essa cacha\u00e7a n\u00e3o combina com esse chocolate, mas sabe que eu gostei, me lembra aquele bombom, o que ser\u00e1 que falta?<\/p>\n\n\n\n

Naturalmente, aconteceu de a cada prova come\u00e7armos mantendo o padr\u00e3o e divagarmos depois seguindo a intui\u00e7\u00e3o ou alguma ideia que surgiu.<\/p>\n\n\n\n

Sem menosprezar em nada o primeiro caminho, que sem d\u00favida \u00e9 necess\u00e1rio para conhecer melhor a combina\u00e7\u00e3o, acabei me descobrindo um fervoroso adepto do segundo. O que me faz vibrar \u00e9 a possibilidade de brincar livremente com os elementos em jogo: as v\u00e1rias caracter\u00edsticas do alimento e da bebida, as quantidades de cada um, os tipos de copo, as temperaturas\u2026 e o que mais se quiser levar em conta.<\/p>\n\n\n\n

Harmoniza\u00e7\u00e3o \u00e9 uma arte dram\u00e1tica<\/h3>\n\n\n\n

Descobri que, pra mim, a harmoniza\u00e7\u00e3o \u00e9 uma arte narrativa. S\u00e3o dois (ou mais) personagens que se encontram e contam uma breve hist\u00f3ria. Ou melhor, d\u00e1 pra ser mais preciso: \u00e9 uma arte dram\u00e1tica, e o seu teatro \u2013 talvez o menor teatro do mundo, de um \u00fanico espectador \u2013 \u00e9 a boca. Considerar o tempo e o espa\u00e7o, a performance de cada personagem e o que eles t\u00eam para contar ao se encontrarem desde que entram at\u00e9 sa\u00edrem de cena, \u00e9 o que o harmonizador tem que conceber e propor. \u00c9 poss\u00edvel que um personagem tenha que entrar em cena antes, fazer um pequeno mon\u00f3logo, para em seguida ser complementado ou contraposto pelo outro.<\/p>\n\n\n\n

Como nas artes, h\u00e1 muito conhecimento t\u00e9cnico a ser mobilizado, mas o fundamento \u00e9 subjetivo. E o espectador ou espectadora poder\u00e1 gostar ou n\u00e3o, n\u00e3o s\u00e3o obrigados a nada. A degusta\u00e7\u00e3o \u00e9, por excel\u00eancia, uma situa\u00e7\u00e3o de cr\u00edtica. O degustador poder\u00e1 gostar um pouco, recusar absolutamente, ou, mesmo com reservas, reconhecer que aquele evento que acontece diante de seus olhos, nariz e boca faz acontecer coisas peculiares que merecem aten\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

\"\"<\/figure>\n\n\n\n

Assim \u00e9 que alimentos que pertencem a um mesmo universo cultural podem ter dificuldade em harmonizar. Digamos que o Bozo e o Capit\u00e3o Am\u00e9rica s\u00e3o muito parecidos, mas n\u00e3o vai ser f\u00e1cil criar a cena em que ambos interagem. Talvez fosse preciso transformar o Bozo num vil\u00e3o psicopata \u2013 mas a\u00ed ele j\u00e1 n\u00e3o \u00e9 o Bozo, \u00e9 o Coringa \u2013 ou fazer este encontro ser algo t\u00e3o casual a ponto de eles apenas se olharem e se reconhecerem, um simples confronto de presen\u00e7as, sem outras consequ\u00eancias dram\u00e1ticas. Mas a primeira possibilidade, de fato, \u00e9 a evidente constata\u00e7\u00e3o do grotesco deste encontro, que pode gerar o riso ou apenas o constrangimento. Tipo hamburguer com milk shake, algo t\u00e3o frequente quanto bizarro.<\/p>\n\n\n\n

Espero que a analogia tenha servido: a harmoniza\u00e7\u00e3o \u00e9 uma esp\u00e9cie de encena\u00e7\u00e3o, e os alimentos que coloco na boca para interagirem em meu paladar s\u00e3o como personagens de uma cena. Est\u00e1 muito abstrato, eu sei, por isso voltemos ao nosso encontro.<\/p>\n\n\n\n

Harmonizando cacha\u00e7a com chocolate<\/h3>\n\n\n\n

A combina\u00e7\u00e3o que eu mais gostei foi a de uma Weber Haus Extra Premium<\/a> \u2013 que fica cinco anos em ton\u00e9is de carvalho e um ano em ton\u00e9is de b\u00e1lsamo \u2013 com um Chocolat du Jour 75% de cacau<\/a>. Mas n\u00e3o \u00e9 uma mistura que funciona em qualquer condi\u00e7\u00e3o, de jeito nenhum. Se confrontados ao mesmo tempo, o chocolate amargo, intenso demais, massacra e finaliza a delicadamente doce Weber Haus. Ent\u00e3o fui experimentando os v\u00e1rios tempos desse encontro. Cheguei \u00e0 dramaturgia da cena.<\/p>\n\n\n\n

Entra o chocolate com energia, gritando com f\u00faria, presen\u00e7a viril, masculina. Sua beleza n\u00e3o \u00e9 sutil, est\u00e1 na totalidade de sua presen\u00e7a, que se imp\u00f5e sem agredir. O chocolate logo atinge seu pico, mas ent\u00e3o nota-se que sorrateiramente uma d\u00favida se introduz no seu discurso. A intensidade do drama inicial cede, mas ainda vibra no espa\u00e7o do teatro. O chocolate perde f\u00f4lego.<\/p>\n\n\n\n

Acendem-se luzes no outro canto do palco para a entrada da cacha\u00e7a, delicada e bela, muito feminina. Ela n\u00e3o se sente em nada amea\u00e7ada pela dureza do confronto, sua for\u00e7a vem de outro lugar. Com palavras sutis e muito bem colocadas, ressignifica todo o tr\u00e1gico destino anunciado pelo chocolate, abre a uma compreens\u00e3o mais profunda do drama, como se dissesse: o conflito n\u00e3o se resolver\u00e1, chocolate, n\u00e3o adianta gritar, mas veja como voc\u00ea, ao meu lado, tamb\u00e9m \u00e9 capaz de sutilezas, h\u00e1 ternura sob a sua brutalidade.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 a humanidade que se apresenta: na fragilidade, na dan\u00e7a dos extremos, numa mir\u00edade de especiarias que surge do encontro da complexa e sutil Weber Haus<\/a> com o intenso, mas j\u00e1 atenuado, Chocolat du Jour 75%.<\/a><\/p>\n\n\n\n

Talvez por estarmos ali, na sede do Mapa da Cacha\u00e7a, bem de frente para o Est\u00e1dio do Pacaembu, me ocorreu a mesma cena \u201creescrita\u201d para o palco do futebol: a jogada come\u00e7a com uma disputa de bola na intermedi\u00e1ria, o segundo-volante Chocolate rouba ainda no seu campo e dispara, os advers\u00e1rios tentam, at\u00e9 com viol\u00eancia, mas nada parece ser capaz de deter o avan\u00e7o vigoroso em diagonal pelo centro do gramado. A plateia se exalta, Chocolate vai fazer um gol de placa. Quando j\u00e1 se aproxima da \u00e1rea advers\u00e1ria, perde velocidade num drible e um zagueiro o alcan\u00e7a, n\u00e3o h\u00e1 condi\u00e7\u00f5es de chute. Chocolate ent\u00e3o passa a bola para o leve e habilidoso atacante Cacha\u00e7a, que chega pela meia-esquerda. Com um sutil jogo de corpo, Cacha\u00e7a desbaratina a zaga, ent\u00e3o saca sei-l\u00e1-de-onde um len\u00e7ol que aplica ao derradeiro beque, e v\u00ea o gol se abrir \u00e0 sua frente. A bola parece completar sua par\u00e1bola em c\u00e2mera lenta, mas antes de retornar ao solo leva o tapa preciso da chuteira de Cacha\u00e7a, para ir receber a car\u00edcia das redes.<\/p>\n\n\n\n

A torcida n\u00e3o sabe se explode ou fica muda. Quem merece a rever\u00eancia das massas: Chocolate, pela determina\u00e7\u00e3o, virilidade e for\u00e7a, ou Cacha\u00e7a, pela sutileza e plasticidade de sua arte? A essa d\u00favida poder\u00edamos dar o nome de harmoniza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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