Passado o Carnaval, no sábado “de cinzas”, 17 de fevereiro, será lançado em São Paulo o livro Cachaça, história e literatura, de Joana Monteleone e Maurício Ayer (orgs.), pela Alameda Editorial. A obra reúne contribuições de historiadores e críticos literários que se dedicaram a estudar os lugares sociais e culturais que a aguardente-de-cana tem assumido na sociedade brasileira ao longo da história. O volume também inclui a transcrição, inédita em livro, do ensaio “Os eufemismos da cachaça”, de Mário de Andrade, texto muito procurado e que agora fica facilmente acessível para todos os leitores.
Sabe-se que a aguardente-de-cana, no Brasil Colônia, serviu como moeda de troca no tráfico negreiro; porém, em paralelo, veio a tornar-se bebida ritual nas religiões afro-brasileiras, utilizada em práticas de culto por esses mesmos escravizados e seus descendentes. Essa cachaça, que é estigmatizada como bebida barata, ligada às mais baixas posições da escala socioeconômica e frequentemente associada à degradação social pelo alcoolismo, poderá, invertendo sua significação, ser evocada como símbolo de brasilidade, portadora dos mais legítimos atributos da nacionalidade brasileira.
Por todas essas ambivalências e contradições, a cachaça rende muito à pesquisa. Sua ampla circulação na sociedade brasileira, cumprindo uma infinidade de funções, continua a provocar os pesquisadores a estabelecer nexos entre os mais diversos contextos de sociabilidade. Como os citados rituais religiosos, a hospitalidade caipira, sertaneja ou caiçara, os usos medicinais, a culinária e a diversão báquica ou exusíaca, para citar apenas alguns, atravessados de sentidos culturais, políticos, sociais, econômicos…
O livro Cachaça, história e literatura não tem nenhuma pretenção de esgotar o tema, longe disso. Reúne oito ensaios e um punhado de crônicas, e pretende ser muito mais um convite a que pesquisadores de diferentes áreas se interessem por estudar mais detidamente a cachaça – e produzir novas contribuições.
Co-organizadora e autora do livro, a historiadora Joana Monteleone afirma que “nada é simples ou evidente quando nos debruçamos sobre uma bebida que faz parte da história, da vida e do imaginário do brasileiro há séculos”. Ela destaca que, “ao longo do tempo, [a cachaça] figurou na maioria das vezes fora do centro das atenções, dos registros, dos escritos”. Co-organizador e autor, o crítico literário e professor Maurício Ayer complementa: “é notório que a cachaça costumou circular principalmente pelas margens da sociedade, associada a categorias sociais subalternas e, não raro, exercendo papéis, no mínimo, ambíguos”. Por isso mesmo, a cachaça suscita muita curiosidade de quem quer ir além do gole e degustar cultura junto com a bebida. O livro foi então concebido em diálogo com os autores e procura responder questões que frequentemente se colocam aos interessados pela cachaça e sua história.
Uma dessas questões é o próprio nome da caninha. Hoje, a legislação diz com precisão o que é cachaça e o que é aguardente, mas historicamente não foi sempre assim. Em seu artigo publicado no livro, o historiador Renato Pinto Venancio identificou os diferentes nomes das bebidas de cana-de-açúcar no Brasil Colônia, um estudo que certamente será muito útil para quem quiser estudar a aguardente neste período. Por outro lado, o mencionado ensaio de Mário de Andrade é também uma investigação sobre os jeitos de nomear a cachaça; só que o escritor e etnólogo está atento aos sentidos a linguagem ao mesmo tempo guarda e revela.
Em conversa com o autor paulista, historiador Lucas Brunozi Avelar foi estudar nos manuscritos de Mário de Andrade, reunidos nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e lá procurou todas as anotações que ele fez sobre a cachaça. E esse fio leva até o artigo de Joana Monteleone: a historiadora mostra como a cachaça foi alçada à categoria de “símbolo nacional” justamente por uma geração de folcloristas em meio a um debate do qual participaram tanto o mestre do modernismo paulista quanto Câmara Cascudo e, objeto de sua atenção, o sergipano José Calazans, autor do primeiro livro sobre a bebida publicado no Brasil, Cachaça, moça branca.
A presença da cachaça nas grandes cidades inspirou dois estudos incluídos no livro. O historiador João Luiz Máximo da Silva pesquisou como era o consumo da bebida na cidade de São Paulo no final do século XIX. E o crítico (e também historiador) Fabrício de Araújo César Gonçalves analisa como a cachaça aparece na obra de um dos maiores letristas da música popular brasileira, o carioca Aldir Blanc. A cachaça que é servida nos ebós a Exu também faz de Rio e São Paulo duas verdadeiras encruzilhadas entre mundos e imaginários.
Indo da cidade aos sertões, temos os dois outros ensaios. A historiadora Rafaela Basso mostra como a aguardente teve um papel importante nas expedições empreendidas pelos bandeirantes paulistas (e seus descendentes) entre os séculos XVII a XIX. Por outro lado, é a própria ideia de expansão de fronteiras para o sertão que está em jogo no conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, estudado pelo crítico Maurício Ayer. Segundo Ayer, “este conto é um dos textos literários mais densas no que se refere à cachaça”, que tece um jogo de perspectivas entre o projeto colonizador e o mundo indígena que resiste.
Fechando a série de estudos, o livro traz um conjunto de quinze crônicas do escritor mineiro Mouzar Benedito, todas elas tendo a caninha como mote ou tema. São as suas “crônicas cachaceiras”, a maior parte delas situada no interior de Minas Gerais, onde Mouzar nasceu e se criou, se achou e se perdeu.
Joana Monteleone é editora e historiadora, autora de Sabores urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo (Alameda Casa Editorial, 2015) e Toda comida tem uma história (Oficina Raquel, 2017). Realiza pesquisas sobre consumo, gastronomia e moda e atualmente faz pós-doutorado na Cátedra Jaime Cortesão do Departamento de História da Universidade de São Paulo.
Maurício Ayer é professor, tradutor e autor de obras musicais, dramáticas e literárias. Desde 2014, desenvolve pesquisa sobre “Os lugares da cachaça na literatura brasileira”, tema sobre o qual publicou artigos e ensaios. Graduou-se em música/composição pela Faculdade Santa Marcelina (2000) e tem doutorado (2006) e pós-doutorado (2016) em literatura francesa pela FFLCH/USP, onde foi professor substituto de 2018 a 2021.
Introdução, p. 7
No reino do impalpável: os significados da cachaça,
de Renato Pinto Venancio, p. 15
Os eufemismos da cachaça,
de Mário de Andrade, p. 39
A pancada do Ganzá: Mário de Andrade e a cultura da cachaça,
de Lucas Brunozi Avelar, p. 45
Identidade, folclore e gosto em Cachaça, moça branca de José Calasans,
de Joana Monteleone, p. 81
Na beira, no breu: cachaça e metamorfose em “Meu tio o Iauaretê” de João Guimarães Rosa,
de Maurício Ayer, p. 103
Um remédio para as mazelas do sertão: os usos da aguardente de cana-de-açúcar nas expedições sertão adentro (séculos XVII- XIX),
de Rafaela Basso, p. 161
“Ébrios, vagabundos e desordeiros”: a cachaça nas ruas de São Paulo de fins do século XIX,
de João Luiz Maximo da Silva, p. 183
Feitiço indecente: a cachaça na obra de Aldir Blanc,
de Fabrício de Araújo César Gonçalves, p. 209
Crônicas cachaceiras,
de Mouzar Benedito, p. 247
Lançamento
Onde: Restaurante Rota do Acarajé
Endereço: Rua Martim Francisco, 530, Santa Cecília, São Paulo – SP
Data: 17/fev, sábado
Horário: a partir das 14h
Maurício: [email protected]
Joana: [email protected]
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