Felipe Jannuzzi

O exemplo da Destilaria Alba: como o terroir está transformando os destilados brasileiros

  • Publicado 3 meses atrás

A Destilaria Alba e o conceito de terroir para a identidade do destilado brasileiro

Desde 2010, o Mapa da Cachaça tem sido um defensor incansável de como a região de produção, a safra e as variedades de cana influenciam consideravelmente as características sensoriais da cachaça. Esses elementos, muitas vezes subestimados ou até considerados como meros artifícios de marketing por alguns produtores mais conservadores, são, na verdade, fundamentais para destacar a riqueza e a complexidade única da cachaça.

Há muito anos, como especialista em destilados, tenho observado debates acalorados sobre a existência e a relevância do terroir na produção de cachaça. O conceito de terroir, tradicionalmente associado ao mundo do vinho, define a influência do ambiente e a cultura local de produção sobre as características da bebida. Alguns produtores de cachaça têm resistido à ideia, vendo-a como um conceito restrito ao vinho e outros fermentados. No entanto, como destacamos em outros momento aqui, outros destilados como whisky, tequila, rum e mezcal têm celebrado e reconhecido o terroir há décadas, incorporando-o em sua produção e perfil sensorial.

del maguey
Mezcal mexicano tem uma forte identificação com as diferentes regiões de produção

Mas é importante salientar que existem exemplares notáveis dentro da indústria da cachaça que já exaltam o terroir há muito anos, como é o caso das marcas Santo Grau e Encantos da Marquesa, que destacam nas suas garrafas a safra ou a região de produção, entre outros atributos ligados ao terroir. Contudo, esses exemplos ainda são exceções em um mercado repleto de marcas que parecem não abraçar plenamente o conceito.

A linha de Cachaça Santo Grau
A Santo Grau destaca três regiões de produção: Paraty, Minas Gerais na Estrada Real e interior de São Paulo

Durante muitos anos, meus textos destacando a ideia de terroir para cachaça eram lidos como ficção pelo mercado produtor. Apesar de na prática entender que estava bebendo a expressão de um território, não encontrava no mercado da cachaça a aceitação de que aquela experiência era a manifestação de uma identidade local.

No entanto, a mentalidade do produtor de cachaça está passando por uma verdadeira metamorfose, acompanhando o ritmo de um mercado globalizado que valoriza identidade e autenticidade. Essas mudanças são influenciadas pelo contato dos produtores com destilados importados, que ostentam com orgulho seu terroir, pela chegada de uma nova geração de produtores de destilados brasileiros e pelas recentes vitórias do mercado da cachaça. Um exemplo recente é o reconhecimento da Denominação de Origem para os produtores de Paraty, uma certificação que sela a relação indissociável entre o produto, sua geografia e as técnicas de fabricação tradicionais.

Destilaria Alba, exemplo de uma nova geração de produtores de destilados brasileiros

Em Monte Belo do Sul, Rio Grande do Sul, encontra-se uma joia da destilação artesanal brasileira, a destilaria Alba, conduzida pela dupla: Pedro Paiva e Rosana Cavaleri. Em seu empreendimento, o casal se dedica à elaboração de aguardentes de cana, brandys, eau de vie e grappas, todos oriundos de matérias-primas selecionadas com extremo zelo.

A destilaria Alba surgiu em 2022 como um marco, trazendo à tona a discussão do terroir e colocando-o no centro de sua identidade. Eu gosto de pensar que ajudei nesse movimento em 2015, quando produzimos o gin Virga em Pirassununga e destacamos ano e safra no nosso destilado zimbrado, mas Pedro e Rosana vão além, e o que fazem é a real manifestação do que significa terroir para as bebidas espirituosas.

Na prática, a identidade começa na escolha meticulosa de variedades de cana e uva, cultivadas em pequenos lotes por eles ou por parceiros locais. Esse cuidado permite que Pedro e Rosana captem a essência do terroir e dos microclimas distintos dessa parte do Brasil. A partir desse terroir excepcional emergem as características únicas, que se traduzem em destilados de identidade definida por estilo e safras.

Quando falamos de cana-de-açúcar, a matéria prima para produção de cachaça, na destilaria Alba cada variedade, com seus diferentes tamanhos e cores já sugerem aos produtores seu potencial perfil sensorial quando forem transformadas em destilados. Para Pedro, as canas de casca mais escuras darão bebidas com sabores mais terrosos e as variedades com cascas mais claras vão trazer uma aguardente com notas mais cítricas. O interessante é que ouvi a mesma afirmação de Oswaldo Santiago, filho de Anísio Santiago, produtor da cachaça Havana, quando o questionei sobre as tradicionais canas usadas em Salinas e popularmente chamadas por lá de cana uva (casca escura) e cana java (casca clara).

Após a seleção da matéria prima, começa a mágica da alquimia no processo de fermentação, quando a planta se transforma em álcool e sabores com o trabalho das leveduras. Na destilaria Alba, as fermentações são prolongadas, algo raramente praticado na cachaça e mais comum no rum agrícola do Caribe. Para ilustrar a magnitude dessa abordagem, enquanto o processo de fermentação tradicional da cachaça dura em média 24 horas, a Alba adota períodos de fermentação que podem se estender por até 30 dias em taques de inox. Esse procedimento meticuloso permite uma expressão mais rica dos sabores e aromas, resultando em bebidas complexas.

Quanto ao estilo de destilação na Alba, a escolha de Pedro por utilizar um alambique por banho maria aquecido a lenha não é por acaso. Este método, reconhecidamente mais lento e com controle de temperaturas mais brandas, assegura que os delicados compostos aromáticos criados na longa fermentação sejam preservados. Os destilados resultantes exibem uma paleta de sabores e aromas mais ampla, contrastando com os produzidos por destilações de alta temperatura, que podem sacrificar essas nuances em favor da eficiência.

Além do conceito de terroir ser colocado em prática com habilidade técnica, um dos triunfos notáveis dos produtores da destilaria Alba reside em estabelecer um diálogo entre bebidas destiladas e outros produtos emblemáticos da Serra Gaúcha. Eles buscam compreender e incorporar a essência da região, explorando a sinergia entre as aguardentes e outros produtos autênticos do terroir, como os vinhos produzidos na região de Monte Belo do Sul, em um esforço coletivo para criar bebidas espirituosas que são verdadeiras representações de seu meio. As uvas, os vinhos e os subprodutos da indústria do vinho destilados no alambique da destilaria Alba têm nome e sobrenome de famílias gaúchas que há séculos vivem naqueles vales.

A destilaria Alba está, assim, à frente de um movimento que celebra a produção artesanal como um ofício de precisão, paixão e identidade, reafirmando que a criação de destilados brasileiros é uma arte cuidadosa e de refinada qualidade, digna de reconhecimento e apreço global.

É um movimento que já não é mais ficção!

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