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ReporA cachaça é uma bebida típica do Brasil e sua produção envolve diversos processos que resultam em características sensoriais únicas. Mas o principal diferencial da cachaça em comparação com outros destilados produzidos no mundo está no uso de madeiras brasileiras para seu envelhecimento.
Se os produtores de rum, whisky, Tequila, grappa utilizam o carvalho europeu ou o carvalho americano para envelhecerem suas bebidas, os produtores de cachaça têm um arsenal com dezenas de madeiras nativas como alternativa, entre elas: amburana, jequitibá-rosa, bálsamo, ariribá, jatobá, castanheira, amendoim, cabreúva e tantas outras.
Aparentemente, esse diferencial já poderia ser uma boa justificativa para a valorização das madeiras brasileiras, certo? No entanto, o que vemos no mercado ainda é uma tímida evolução do tema. Listo alguns itens que motivam minha afirmação:
As madeiras brasileiras têm o potencial de trazer tipicidade e individualidade à bebida. O sensorial relacionado ao seu uso é ao mesmo tempo um marcador de tradição regional e também de criatividade e individualidade de cada produtor.
A madeira pode ser considerada um marcador de tradição quando utilizada de maneira sistemática em determinadas regiões por muitos anos, criando uma identidade local. Faço aqui uma analogia com a turfa na produção do whisky escocês, que conforme sua intensidade e técnica de uso, tem papel fundamental na identidade de algumas regiões de produção na Escócia.
O whisky de Islay, por exemplo, é famoso por seu sabor defumado e turfado, que é resultado do uso de turfa no processo de secagem da cevada maltada. Essa característica confere aos whiskies de Islay um aroma e sabor únicos, muitas vezes descritos como fumaça de fogueira ou notas medicinais, o diferenciando das outras regiões de produção de whisky escocês.
Em Salinas, na década de 40 do século passado, se popularizou uma maneira de envelhecer cachaça em bálsamo. Nessa região, a cachaça é envelhecida em bálsamo utilizando dornas grande e antigas e por longos períodos de envelhecimento. Eu chamo essa filosofia de produção de Escola Anísio Santiago (existem outras características nesse processo além da madeira, mas o bálsamo é o protagonista).
Essa filosofia de produção se popularizou com a cachaça Havana, mas hoje marcas de Salinas e de outras regiões do Brasil têm cor dourado-esverdeado, aroma e sabor de anis, cravo, erva doce e sensações de frescor e picancia por conta dessa técnica de envelhecimento nessa madeira brasileira.
Podemos citar outras regiões fortemente caracterizada pelas madeiras brasileiras: a amburana de Januária, o freijó do Brejo Paraibano, o amendoim de Paraty, a grápia no Sul, o ariribá no Nordeste, entre outras.
Precisamos valorizar as identidades locais correndo o risco de perdê-las com o passar dos anos e gerações.
A madeira também pode ser vista como uma fonte de inovação no envelhecimento da cachaça. Através do uso de tecnologia, ciência e arte, é possível criar blends, realizar diferentes tostas ou carbonizações, utilizar o método de envelhecimento em soleira ou envelhecimento sequencial, entre outras técnicas.
A inovação tecnológica no envelhecimento da cachaça é uma forma de personalizar a bebida e criar uma assinatura para o produtor. Atualmente, o uso do carvalho tem sido mais explorado nesse sentido, pois já existem referências e histórico de seu uso em outros destilados. O próximo desafio é aplicar essas técnicas nas madeiras brasileiras, o que representa uma grande oportunidade de inovação.
Quando uma inovação se populariza, produtores próximos tendem a copiar a técnica, e com o tempo ela se torna uma característica local. É uma evolução natural.
No começo do século, começou a se popularizar um tipo de cachaça envelhecida em amburana no Rio Grande do Sul, que possui características diferentes da amburana armazenada do norte de Minas Gerais. A amburana gaúcha é envelhecida por pelo menos um ano em barris de no máximo 700 litros e com tosta nos barris. Essa inovação, resulta em uma cor âmbar intensa, aromas e sabores de baunilha, cravo e castanhas, além de sensações aveludadas e amenas. Essa característica sensorial é definida pela técnica e filosofia de uso da amburana na região e foi adotada pelos produtores do estado.
Valorizar as madeiras brasileiras usadas para envelhecer cachaça é reconhecer a importância da tradição regional, ao mesmo tempo em que se busca a inovação através do uso de novas tecnologias. A madeira é um elemento essencial nessa história, trazendo cor, aroma, sabor e sensações à cachaça, e seu uso adequado pode ser um diferencial importante para os produtores.
Para valorizar essas madeiras, é necessário focar em algumas frentes importantes. Aqui estão as minhas sugestões de atuação:
Algumas regiões de produção de cachaça possuem suas próprias madeiras e técnicas tradicionalmente utilizadas no envelhecimento da cachaça. Aqui no artigo citei algumas. Minha visão é que com o tempo e evolução do mercado, outras regiões vão surgir. Mas para incentivar essa organização do mercado, precisamos incentivar e valorizar essa identificação.
É essencial valorizar e destacar essas regiões como portadoras de uma identidade local única. Ao promover a conexão entre as madeiras e as regiões, podemos fortalecer a relação entre o terroir e as características sensoriais da cachaça.
O master blender ou mestre de adega tem um papel crucial na valorização das madeiras brasileiras. Eles são responsáveis por utilizar essas madeiras de forma criativa, buscando criar uma assinatura própria para suas cachaças. Ao reconhecer e valorizar o conhecimento e habilidades desses profissionais, podemos incentivar a utilização de madeiras brasileiras e promover a diversidade e excelência da cachaça.
É essencial realizar estudos científicos sobre o papel das madeiras brasileiras no envelhecimento da cachaça. Essas pesquisas podem fornecer informações valiosas para toda a cadeia produtiva, incluindo tanoeiros, produtores, mestres de adega, sommeliers e bartenders. Compreender a interação entre as madeiras e a cachaça em nível molecular, bem como suas influências no perfil sensorial da bebida, pode auxiliar na criação de técnicas de envelhecimento mais refinadas e inovadoras, além dar consistência e segurança alimentar na utilização dessas madeiras.
Outro diferencial seria utilizarmos as análises de laboratório para entendermos melhor os processos de envelhecimento e sua relação com as madeiras e o terroir. Ou seja, encontrar os marcadores de envelhecimento não apenas da madeira bálsamo, mas sim da cachaça salinense envelhecida em bálsamo.
A rastreabilidade do barril usado para envelhecer cachaça é a capacidade de seguir e documentar o histórico e a origem do barril ao longo de seu ciclo de vida. Tal ferramenta é essencial para garantir a qualidade, autenticidade e conformidade da cachaça produzida, bem como para atender a regulamentações e padrões de qualidade estabelecidos.
Hoje, não conheço iniciativa que garanta esse “selo de rastreabilidade” das madeiras utilizadas na produção das mais distintas cachaças.
A cachaça sempre será o principal vetor para a propagação das madeiras brasileiras, mas estamos observando outras categorias usando as madeiras nacionais para agregar novos aromas e sabores. Já é possível encontrar no mercado whisky, rum, gin, cerveja, coquetéis e outros alimentos e bebidas maturados em madeiras como bálsamo, jequitibá-rosa e, principalmente, amburana. Em muitas aplicações não são utilizados barris, mas chips ou lascas de madeira brasileira.
O uso das madeiras brasileiras em outras categorias ajuda na popularização e reforça, ou pelo menos deveria, a conscientização da importância de valorizarmos, protegermos e criarmos uma cadeia sustentável para esses ingredientes.
Ao adotarmos essas frentes de valorização das madeiras brasileiras, estaremos promovendo o reconhecimento da riqueza e diversidade de nossas madeiras, além de fortalecer a identidade da cachaça. A ciência, a valorização dos mestres de adega e o destaque das regiões contribuirão para elevar a qualidade e o prestígio da cachaça, tanto no mercado nacional quanto internacional.
No entanto, na minha opinião, o maior ganho em valorizar nossas madeiras para envelhecer cachaça está em ajudar a preservar a flora brasileira. O que não conhecemos, não valorizamos. E o que não valorizamos, perdemos! A cachaça pode ser um veiculo para o brasileiro valorizar mais o que é autenticamente nosso.
CASTRO, M. C. de. Caracterização química e sensorial do grau de maturação de cachaça envelhecida em tonéis novos de carvalho: avaliação de compostos fenólicos marcadores de envelhecimento. 2020. 90 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciência e Tecnologia de Alimentos, Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2020.
CERNÎSEV, S. Analysis of lignina-derived phenolic compounds and their transformation in aged wine distillates. Food Control, v. 73, p. 281-290, 2016.
DORNAS HAVANA. Figura das madeiras brasileiras
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