É sempre especial quando um produtor de cachaça apresenta uma proposta clara e bem definida para seu portfólio. Não se trata apenas de preencher tabela ou cumprir a velha dobradinha — uma prata sem madeira e uma armazenada em carvalho — muitas vezes genérico, sem personalidade.
Felizmente, temos visto cada vez mais alambiques que constroem seus portfólios como quem compõe uma narrativa. Lembra os tempos áureos dos álbuns musicais, antes da era dos streamings, quando cada faixa era escolhida a dedo e sua ordem importava — tudo para contar uma história com começo, meio e fim. Assim também deveria ser com a cachaça: uma jornada sensorial com coerência, identidade e intenção.
Degustar essas cachaças deixa de ser apenas uma análise técnica ou um prazer momentâneo. Passa a ser uma leitura atenta de capítulos distintos, com nuances, reviravoltas e assinatura própria. Não é apenas mais uma prata, mais um carvalho, mais uma amburana. É uma obra pensada, com propósito e consistência — capaz de gerar identificação e fidelidade.
É exatamente assim que enxergo o trabalho da Toca da Coruja, uma cachaçaria de Capão Bonito (SP), que apresenta um portfólio construído com rara clareza de visão. Essa narrativa sensorial é contada por meio de uma trilogia de cachaças extra-premium: Green, Blue e Black. Uma coleção que convida o apreciador a revisitar cada rótulo e descobrir, a cada gole, novas camadas dessa história que se revela devagar — como toda boa cachaça deve ser.
Nas palavras do produtor Thiago Mochiutti:
Queremos contar uma história mais clássica. Gostamos de um princípio bem rústico. Toda nossa comunicação, nossas instalações na fazenda e nossas cachaças têm que refletir essa ideia do rústico.
Thiago Mochiutti, produtor da Toca da Coruja
Quando falamos de “clássico”, o estilo da destilaria se revela no protagonismo do carvalho americano, madeira mais usada no envelhecimento de bebidas como whisky, bourbon e rum. A escolha não é à toa: a familiaridade sensorial com essas bebidas serve como ponte para conquistar novos apreciadores e também fala muito sobre as preferências dos produtores. Daí também o uso estratégico das cores em inglês — Green, Blue, Black — remetendo à famosa linha do whisky Johnnie Walker.

Mas, ao contrário da escocesa, a destilaria paulista guarda um trunfo inconfundível: a diversidade das madeiras brasileiras, que aparecem com elegância nos blends. Apesar de coadjuvantes, elas conferem sofisticação, brasilidade e profundidade aos rótulos.
À medida que nossas extra-premium evoluem, elas devem trazer uma nova camada sensorial, mostrando de forma didática para nossos consumidores o papel do mestre de adega.
Thiago Mochiutti.
Para essa construção, Thiago contou com a consultoria de um verdadeiro mestre do blending: Armando Del Bianco, conhecido por sua expertise em produzir blends que passam por barris de carvalho casados com madeiras brasileiras, principalmente a amburana. Além de contribuir com o repertório da Toca da Coruja, Armando tem um trabalho consistente com a Gouveia Brasil, quando apresenta sua Extra-Premium, outro belo exemplar no carvalho e amburana.
Minha ideia é fazer blends com madeiras de cores, para trazer brilhos e tonalidades, e não queria o frutado da cana — queria aromas frutados e de especiarias vindos da madeira.
Tiago Mochiutti

R$ 250 comprar direto com produtor
Safra: Fevereiro de 2025. Lote: 001
A minha análise de hoje é da Toca da Coruja Blue — o capítulo do meio dessa trilogia sensorial. Seu envelhecimento é sequencial: cinco anos em barris de 200 litros de carvalho americano de tosta leve, seguidos por um ano de finalização em dorna de amburana de 700 litros. Um casamento entre a suavidade clássica do carvalho e a personalidade envolvente da madeira brasileira.
No visual, um dourado-escuro, com lágrimas moderadas que já indicam certa untuosidade. No nariz, o carvalho se impõe com elegância — notas de baunilha, noz-moscada e coco —, mas a amburana logo se anuncia, delicada, trazendo memórias da casquinha do crème brûlée e um leve toque de cereja.
Na boca, a cachaça mostra sofisticação e equilíbrio. De alta bebabilidade, pede para ser degustada sem gelo — a diluição excessiva pode desequilibrar a amburana. Melhor deixá-la evoluir lentamente na taça, no seu próprio tempo. O paladar começa com uma doçura sutil, termina mais seco, com o carvalho liderando a cena: baunilha e caramelo. O retrogosto, de médio para longo, traz uma picância discreta, agradável, que convida naturalmente a um novo gole.
E então, uma surpresa final: no fundo da taça, após o último gole, a amburana reaparece no nariz com profundidade — couro, tabaco e, para os mais atentos, um toque quase animal da fermentação selvagem, mostrando o lado funky do vinho de cana.
Com os rótulos Green, Blue e o futuro Black, a Toca da Coruja constrói uma narrativa sólida, com começo, meio e um aguardado desfecho — ou talvez o prenúncio de novos capítulos. Quem sabe uma edição Gold? Ou uma linha paralela, explorando outras facetas desse estilo que combina o clássico com elegância? O carvalho, em suas diversas expressões, aliado às nuances das madeiras brasileiras e ao olhar apurado de um mestre de adega, ainda pode render muitas histórias.
No momento, fica a certeza: a Toca da Coruja Blue é uma cachaça com identidade e propósito — atributos que, felizmente, estão cada vez mais presentes nos portfólios de cachaça.
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Em 2010, Felipe Jannuzzi fundou o Mapa da Cachaça, premiado projeto cultural com reconhecimento internacional e a principal referência sobre cachaça no mundo. Felipe é um dos sócios fundadores da Espíritos Brasileiros, empresa pioneira no mercado de produção de gin no Brasil, responsável pelo premiado Virga, primeiro gin artesanal brasileiro e o único no mundo que leva doses de cachaça na receita. Desde 2021, é um dos sócios da BR-ME, empresa especializada em produtos brasileiros, como vinhos, cafés, azeites, queijos e chocolates.
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