Alambique vs. Coluna: a química e a física por trás da alma da cachaça

  • Publicado 2 semanas atrás

No universo da cachaça, uma das distinções mais fundamentais e que impacta diretamente o sabor, o aroma e a qualidade da bebida reside no seu método de destilação. De um lado, o tradicional alambique de cobre, associado à produção artesanal; do outro, a moderna coluna de aço inoxidável, ligada à produção em larga escala. Embora a legislação brasileira não estabeleça uma diferenciação formal entre as cachaças produzidas por cada método, as diferenças químicas, físicas e sensoriais entre elas são profundas e perceptíveis a cada gole.

Este artigo se propõe a mergulhar nesse tema, explorando as particularidades de cada processo para que você, apreciador de uma boa cachaça, possa fazer suas escolhas de forma mais consciente e informada.

Uma viagem no tempo: A História da Destilação

A arte da destilação é uma prática milenar. Os primeiros alambiques, desenvolvidos por alquimistas árabes por volta do ano 800, eram equipamentos de laboratório usados para criar óleos essenciais e álcool para fins medicinais. Feitos de cobre, esses aparatos evoluíram ao longo dos séculos, mas o princípio da destilação em batelada (ou descontínua) permaneceu. É essa técnica ancestral que até hoje define a produção da cachaça de alambique.

Com a Revolução Industrial e a crescente demanda por álcool e outros destilados, como os derivados de petróleo, o método de batelada se mostrou ineficiente. Em 1813, foi patenteada a primeira coluna de destilação contínua, uma inovação que permitia uma produção em maior volume, mais rápida e com menor custo, sendo rapidamente adotada pela indústria de bebidas em larga escala.

O coração da questão: Alambique vs. Coluna

As diferenças entre os dois sistemas vão muito além do material de que são feitos. Elas abrangem o processo, a escala, a filosofia de produção e, consequentemente, o produto final. A tabela abaixo resume os pontos-chave:

CaracterísticaAlambique de CobreColuna de Inox
ProcessoDescontínuo (em bateladas)Contínuo
MaterialCobreAço inoxidável
SeparaçãoSeparação das frações “cabeça”, “coração” e “cauda”Sem separação de frações
FocoQualidade e complexidade sensorialQuantidade, padronização e eficiência
RendimentoMenor, com perdas de até 40% do álcoolMaior, aproveitando quase todo o álcool
Aroma e SaborMais ricos, complexos e frutadosMais neutros, com predominância do álcool
CompostosMaior concentração de congêneres desejáveisMenor complexidade de compostos secundários

A destilação em alambique de cobre: Uma sinfonia de compostos

alambique de cobre da cachaça paulista, Japi, Itupeva e aguardente JP
Alambique da cachaça JP em Itupeva, São Paulo

Na produção artesanal, o mosto fermentado da cana-de-açúcar é aquecido lentamente no alambique. O grande segredo aqui é a maestria do alambiqueiro em separar as três frações da destilação, com base em seus diferentes pontos de ebulição:

•Cabeça: Os primeiros 5-10% do destilado. É rica em compostos mais voláteis que o etanol, como o acetaldeído (principal responsável pela ressaca) e o metanol (altamente tóxico), e deve ser descartada.

•Coração: A alma da cachaça, correspondendo a cerca de 80% do volume. É a fração nobre, rica em etanol e nos congêneres (compostos secundários) que conferem à bebida seus aromas e sabores característicos. Aqui se concentram os ésteres (aromas frutados e florais), parte dos álcoois superiores (que dão corpo e complexidade) e outros compostos desejáveis.

•Cauda: Os 10% finais da destilação. Contém compostos menos voláteis e com aromas desagradáveis, conhecidos como óleo fúsel (mistura de álcoois superiores como propanol, isobutanol e álcool isoamílico), além de ácidos orgânicos, e também é separada.

Esse processo cuidadoso, que prioriza a qualidade em detrimento da quantidade, resulta em uma bebida mais pura e sensorialmente complexa.

A destilação em coluna de aço inoxidável: eficiência e neutralidade

Ypióca coluna de inox usada no processo de produção da cachaça industrial
Coluna de inox para destilação de cachaça. Foto foi tirada na antiga destilaria da Ypióca, no Ceará

Na destilação contínua, o mosto fermentado alimenta a coluna ininterruptamente, enquanto o destilado é extraído ao mesmo tempo. A separação dos compostos ocorre nos diferentes “pratos” ou estágios da coluna, mas o processo não visa a separação fina das frações como no alambique. O resultado é um destilado com alto teor alcoólico e mais neutro, pois muitos dos compostos secundários (os congêneres) são eliminados ou reduzidos.

Por não haver uma separação tão criteriosa, compostos indesejáveis podem passar para o produto final, deixando o aroma e o gosto de álcool mais evidentes. Para mascarar essas características e tornar a bebida mais palatável, muitas cachaças industriais recebem adição de açúcar, em quantidades que podem chegar a 30 gramas por litro.

A ciência por trás do gole: O papel catalítico do cobre

O uso do cobre nos alambiques não é apenas uma tradição. Este metal desempenha um papel químico fundamental na qualidade da cachaça. Durante a destilação, o cobre atua como um catalisador, promovendo reações que eliminam compostos sulfurados, responsáveis por odores desagradáveis como o de “ovo podre”.

O principal vilão nesse quesito é o dimetilsulfeto (DMS). Estudos acadêmicos comprovam que a destilação em equipamentos de aço inoxidável resulta em bebidas com maiores teores de DMS e outros compostos de enxofre, o que afeta negativamente suas características sensoriais. A ausência do cobre resulta em uma bebida de menor qualidade sensorial. A importância do cobre é tão reconhecida que alguns produtores industriais instalam placas de cobre em suas colunas de inox para tentar minimizar esses defeitos.

Além disso, o alambique de cobre, por ter menor refluxo (processo de condensação e re-evaporação dentro do destilador), tende a preservar uma maior concentração de compostos de aroma e sabor originados na fermentação, resultando em uma bebida mais complexa e rica.

“Artesanal” é sempre melhor? Um alerta ao consumidor

Apesar das vantagens sensoriais da cachaça de alambique, é um erro assumir que todo produto artesanal é sinônimo de qualidade superior. A produção em alambique exige conhecimento técnico, higiene rigorosa e o descarte correto das frações de cabeça e cauda. Uma cachaça artesanal mal produzida pode conter contaminantes como o carbamato de etila, um composto potencialmente carcinogênico, ou excesso de cobre, sendo prejudicial à saúde.

Por isso, é fundamental que o consumidor busque por cachaças de produtores sérios e, de preferência, com certificação. A formalização do produtor é uma garantia de que a bebida passou por controles de qualidade e é segura para o consumo.

Conclusão: uma questão de química, física e gosto

A diferença entre uma cachaça de alambique e uma de coluna é, em essência, a diferença entre um produto de terroir, complexo e cheio de nuances, e um produto padronizado, neutro e de grande escala. A primeira convida à degustação e à descoberta de um universo de aromas e sabores, fruto de uma rica composição de congêneres. A segunda, muitas vezes, cumpre a função de ser a base para drinks, como a caipirinha, onde seu caráter neutro pode ser uma vantagem.

Não há um método “certo” ou “errado”, mas sim filosofias de produção distintas que resultam em bebidas para diferentes paladares e ocasiões. O mais importante é entender a ciência por trás dessas diferenças para apreciar a riqueza e a diversidade da bebida nacional. Agora que você conhece os segredos da destilação, que tal degustar uma de cada e tirar suas próprias conclusões?

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