No universo da cachaça, uma das distinções mais fundamentais e que impacta diretamente o sabor, o aroma e a qualidade da bebida reside no seu método de destilação. De um lado, o tradicional alambique de cobre, associado à produção artesanal; do outro, a moderna coluna de aço inoxidável, ligada à produção em larga escala. Embora a legislação brasileira não estabeleça uma diferenciação formal entre as cachaças produzidas por cada método, as diferenças químicas, físicas e sensoriais entre elas são profundas e perceptíveis a cada gole.
Este artigo se propõe a mergulhar nesse tema, explorando as particularidades de cada processo para que você, apreciador de uma boa cachaça, possa fazer suas escolhas de forma mais consciente e informada.
A arte da destilação é uma prática milenar. Os primeiros alambiques, desenvolvidos por alquimistas árabes por volta do ano 800, eram equipamentos de laboratório usados para criar óleos essenciais e álcool para fins medicinais. Feitos de cobre, esses aparatos evoluíram ao longo dos séculos, mas o princípio da destilação em batelada (ou descontínua) permaneceu. É essa técnica ancestral que até hoje define a produção da cachaça de alambique.
Com a Revolução Industrial e a crescente demanda por álcool e outros destilados, como os derivados de petróleo, o método de batelada se mostrou ineficiente. Em 1813, foi patenteada a primeira coluna de destilação contínua, uma inovação que permitia uma produção em maior volume, mais rápida e com menor custo, sendo rapidamente adotada pela indústria de bebidas em larga escala.
As diferenças entre os dois sistemas vão muito além do material de que são feitos. Elas abrangem o processo, a escala, a filosofia de produção e, consequentemente, o produto final. A tabela abaixo resume os pontos-chave:
| Característica | Alambique de Cobre | Coluna de Inox |
|---|---|---|
| Processo | Descontínuo (em bateladas) | Contínuo |
| Material | Cobre | Aço inoxidável |
| Separação | Separação das frações “cabeça”, “coração” e “cauda” | Sem separação de frações |
| Foco | Qualidade e complexidade sensorial | Quantidade, padronização e eficiência |
| Rendimento | Menor, com perdas de até 40% do álcool | Maior, aproveitando quase todo o álcool |
| Aroma e Sabor | Mais ricos, complexos e frutados | Mais neutros, com predominância do álcool |
| Compostos | Maior concentração de congêneres desejáveis | Menor complexidade de compostos secundários |

Na produção artesanal, o mosto fermentado da cana-de-açúcar é aquecido lentamente no alambique. O grande segredo aqui é a maestria do alambiqueiro em separar as três frações da destilação, com base em seus diferentes pontos de ebulição:
•Cabeça: Os primeiros 5-10% do destilado. É rica em compostos mais voláteis que o etanol, como o acetaldeído (principal responsável pela ressaca) e o metanol (altamente tóxico), e deve ser descartada.
•Coração: A alma da cachaça, correspondendo a cerca de 80% do volume. É a fração nobre, rica em etanol e nos congêneres (compostos secundários) que conferem à bebida seus aromas e sabores característicos. Aqui se concentram os ésteres (aromas frutados e florais), parte dos álcoois superiores (que dão corpo e complexidade) e outros compostos desejáveis.
•Cauda: Os 10% finais da destilação. Contém compostos menos voláteis e com aromas desagradáveis, conhecidos como óleo fúsel (mistura de álcoois superiores como propanol, isobutanol e álcool isoamílico), além de ácidos orgânicos, e também é separada.
Esse processo cuidadoso, que prioriza a qualidade em detrimento da quantidade, resulta em uma bebida mais pura e sensorialmente complexa.

Na destilação contínua, o mosto fermentado alimenta a coluna ininterruptamente, enquanto o destilado é extraído ao mesmo tempo. A separação dos compostos ocorre nos diferentes “pratos” ou estágios da coluna, mas o processo não visa a separação fina das frações como no alambique. O resultado é um destilado com alto teor alcoólico e mais neutro, pois muitos dos compostos secundários (os congêneres) são eliminados ou reduzidos.
Por não haver uma separação tão criteriosa, compostos indesejáveis podem passar para o produto final, deixando o aroma e o gosto de álcool mais evidentes. Para mascarar essas características e tornar a bebida mais palatável, muitas cachaças industriais recebem adição de açúcar, em quantidades que podem chegar a 30 gramas por litro.






O uso do cobre nos alambiques não é apenas uma tradição. Este metal desempenha um papel químico fundamental na qualidade da cachaça. Durante a destilação, o cobre atua como um catalisador, promovendo reações que eliminam compostos sulfurados, responsáveis por odores desagradáveis como o de “ovo podre”.
O principal vilão nesse quesito é o dimetilsulfeto (DMS). Estudos acadêmicos comprovam que a destilação em equipamentos de aço inoxidável resulta em bebidas com maiores teores de DMS e outros compostos de enxofre, o que afeta negativamente suas características sensoriais. A ausência do cobre resulta em uma bebida de menor qualidade sensorial. A importância do cobre é tão reconhecida que alguns produtores industriais instalam placas de cobre em suas colunas de inox para tentar minimizar esses defeitos.
Além disso, o alambique de cobre, por ter menor refluxo (processo de condensação e re-evaporação dentro do destilador), tende a preservar uma maior concentração de compostos de aroma e sabor originados na fermentação, resultando em uma bebida mais complexa e rica.
Apesar das vantagens sensoriais da cachaça de alambique, é um erro assumir que todo produto artesanal é sinônimo de qualidade superior. A produção em alambique exige conhecimento técnico, higiene rigorosa e o descarte correto das frações de cabeça e cauda. Uma cachaça artesanal mal produzida pode conter contaminantes como o carbamato de etila, um composto potencialmente carcinogênico, ou excesso de cobre, sendo prejudicial à saúde.
Por isso, é fundamental que o consumidor busque por cachaças de produtores sérios e, de preferência, com certificação. A formalização do produtor é uma garantia de que a bebida passou por controles de qualidade e é segura para o consumo.






A diferença entre uma cachaça de alambique e uma de coluna é, em essência, a diferença entre um produto de terroir, complexo e cheio de nuances, e um produto padronizado, neutro e de grande escala. A primeira convida à degustação e à descoberta de um universo de aromas e sabores, fruto de uma rica composição de congêneres. A segunda, muitas vezes, cumpre a função de ser a base para drinks, como a caipirinha, onde seu caráter neutro pode ser uma vantagem.
Não há um método “certo” ou “errado”, mas sim filosofias de produção distintas que resultam em bebidas para diferentes paladares e ocasiões. O mais importante é entender a ciência por trás dessas diferenças para apreciar a riqueza e a diversidade da bebida nacional. Agora que você conhece os segredos da destilação, que tal degustar uma de cada e tirar suas próprias conclusões?
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O Mapa da Cachaça é um projeto cultural e educativo criado com o objetivo de divulgar e valorizar a cachaça, que é um patrimônio cultural e um dos símbolos da identidade brasileira.