Pitangui ocupa uma posição estratégica e simbólica na história de Minas Gerais. Fundada oficialmente em 1715, a cidade foi elevada à condição de vila ainda no início do século XVIII, sendo reconhecida como a sétima Vila do Ouro do estado. Sua origem está diretamente ligada à descoberta de ouro na região e à necessidade da Coroa portuguesa de organizar, controlar e explorar economicamente esse território em rápida expansão.
Ao contrário de outros núcleos que se desenvolveram de forma mais dispersa, Pitangui se consolidou como um centro urbano relevante, com funções administrativas, religiosas e econômicas bem definidas. Essa importância se reflete até hoje no patrimônio preservado: casarões coloniais, igrejas, chafarizes históricos — entre as primeiras manifestações de água canalizada da região — e um acervo significativo mantido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
Inserida no contexto da Estrada Real, Pitangui foi ponto de passagem, abastecimento e permanência. Essa circulação constante de pessoas, mercadorias e ideias contribuiu para a formação de uma cultura local complexa, onde o ouro, a agricultura, a religiosidade e a produção de aguardente de cana caminharam juntas desde os primórdios da ocupação.
Desde o período colonial, a cachaça esteve profundamente integrada à vida econômica e social de Pitangui. Produzida nos engenhos espalhados pelas fazendas da região, a aguardente de cana cumpria múltiplas funções: consumo cotidiano, moeda de troca, pagamento de serviços e abastecimento das populações envolvidas na mineração.
A presença da cachaça não era marginal — ela fazia parte do funcionamento do sistema colonial. Justamente por isso, tornou-se alvo de disputas, controle fiscal e conflitos políticos, culminando em um dos episódios mais emblemáticos da história da bebida em Minas Gerais: a Revolta da Cachaça de Pitangui.
A Revolta da Cachaça de Pitangui, ocorrida no início do século XVIII, é considerada um dos primeiros movimentos de resistência organizada contra a política fiscal da Coroa portuguesa em Minas Gerais. O conflito teve como estopim a tentativa de proibir ou sobretaxar a produção e comercialização da cachaça, em benefício da bagaceira portuguesa e como forma de ampliar o controle sobre a economia local.
Naquele contexto, a Coroa via a aguardente de cana produzida no Brasil como uma concorrente direta dos destilados europeus e, ao mesmo tempo, como uma atividade difícil de fiscalizar. A imposição de impostos elevados, restrições à produção e ameaças de fechamento de engenhos atingiu diretamente produtores, comerciantes e trabalhadores locais.
Em Pitangui, onde a cachaça já era parte estruturante da economia rural, essas medidas encontraram forte resistência. Produtores e moradores se organizaram para defender o direito de produzir e comercializar a bebida, não apenas como atividade econômica, mas como prática legítima de subsistência e identidade local.
A revolta não foi um movimento isolado ou espontâneo: ela expressava um descontentamento mais amplo com o controle excessivo da Coroa, a carga tributária elevada e a interferência direta nos modos de vida locais. Ainda que tenha sido reprimida, a Revolta da Cachaça de Pitangui deixou marcas profundas, tornando-se símbolo de resistência e antecipando outros movimentos contestatórios que surgiriam em Minas ao longo do século XVIII.
A revolta revela a importância histórica da cachaça como elemento político, econômico e cultural. Em Pitangui, a bebida não era apenas um produto — era parte da estrutura social.
Apesar das tentativas de controle e repressão, a produção de cachaça nunca desapareceu de Pitangui. Ao contrário, ela se adaptou, resistiu e atravessou os séculos por meio da transmissão de saberes, da prática familiar e da cultura rural.
Com o declínio do ciclo do ouro, a agricultura ganhou ainda mais importância, e os engenhos continuaram a desempenhar papel central na vida econômica local. A cachaça passou a ser produzida em menor escala, muitas vezes para consumo próprio ou comércio regional, mantendo viva uma tradição que mais tarde seria ressignificada à luz de novos critérios de qualidade, regulamentação e identidade.
Esse processo histórico ajuda a compreender por que Pitangui, ainda hoje, apresenta uma relação tão orgânica com a cachaça — não como modismo, mas como herança cultural profundamente enraizada.
É nesse território carregado de história que se insere a Cachaça Bem-Me-Quer, produzida no Alambique Santíssima, sob a condução de José Otávio Lopes e Rosane Romano. O projeto nasce com uma visão clara: produzir cachaça artesanal com rigor técnico, consciência histórica e respeito ao tempo.
A destilação é realizada em alambique de cobre, com atenção rigorosa aos cortes de cabeça, coração e cauda, etapa fundamental para a qualidade sensorial e a segurança da bebida. Cada decisão tomada no processo produtivo reflete uma compreensão profunda da técnica e uma recusa a atalhos industriais.
As maturações seguem a mesma lógica: são conduzidas com paciência, observação constante e leitura sensorial cuidadosa, buscando equilíbrio e complexidade sem descaracterizar a base da cachaça. O resultado são bebidas que dialogam com o território e com a tradição mineira, sem perder identidade própria.





O Alambique Santíssima se consolidou também como um importante polo de turismo da cachaça em Pitangui. A visita é estruturada como uma imersão completa, guiada por todas as etapas do processo produtivo, permitindo que o visitante compreenda não apenas o “como”, mas o “porquê” das escolhas feitas ao longo da produção.
As degustações orientadas aprofundam essa experiência, conectando aromas, sabores e texturas à história da bebida e do território. Um dos pontos altos é a possibilidade de o visitante criar o próprio blend, assumindo papel ativo na construção sensorial da cachaça e levando para casa uma garrafa personalizada.
Essa proposta reforça a ideia de que a cachaça é fruto de escolhas conscientes e que o conhecimento amplia o prazer da experiência.
Além da produção e do turismo, o espaço do alambique funciona como ponto de convivência cultural. O empório com produtos locais valoriza produtores da região e fortalece a economia de proximidade, enquanto eventos como a Noite do Vinil e exposições de carros antigos ampliam o diálogo entre a cachaça e outras expressões culturais.

O compromisso com o território se expressa também na dimensão ambiental. O Alambique Santíssima desenvolve um projeto de reflorestamento, criando um bosque didático de madeiras de envelhecimento ao redor do alambique.
Nesse espaço, o visitante pode caminhar entre as árvores, conhecer as espécies utilizadas nos barris e compreender, de forma sensorial e educativa, como cada madeira influencia aromas, sabores e estrutura da cachaça. Trata-se de uma abordagem que une sustentabilidade, educação e experiência, fortalecendo a relação entre natureza e produção artesanal.
Visitar Pitangui é entrar em contato com uma cidade que não transformou sua história em peça de museu, mas a mantém viva no cotidiano. A Cachaça Bem-Me-Quer, ao se inserir nesse contexto, atua como uma ponte entre passado e presente, ressignificando uma tradição que já foi motivo de revolta, resistência e identidade.
Ao unir técnica, história, turismo, sustentabilidade e cultura, o Alambique Santíssima contribui para que a cachaça continue sendo, em Pitangui, muito mais do que uma bebida: um instrumento de leitura do território e de valorização da memória mineira.
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O Mapa da Cachaça é um projeto cultural e educativo criado com o objetivo de divulgar e valorizar a cachaça, que é um patrimônio cultural e um dos símbolos da identidade brasileira.