Os alambiques de cachaça de Quissamã - Rio de Janeiro

  • Publicado 14 anos atrás

Descubra a rica história de Quissamã, um município no norte fluminense cercado por canaviais, e sua conexão com a produção de cachaça.

Antes de ser convidado para participar do IV Encontro de Produtores de Cachaça de Quissamã e integrar o júri do ranking de cachaças da região, eu nunca tinha ouvido falar desse município do estado do Rio de Janeiro. Quando pensamos nas cachaças fluminenses, lembramos dos tradicionais alambiques do Vale do Café ou de Paraty. Quissamã e suas cachaças, para mim, eram incógnitas. Saí de São Paulo curioso para descobrir a história da cidade e sua relação com a produção de cachaça.

Meu voo saiu de São Paulo às 7h30 do dia 9 de setembro. Ao desembarcar no Aeroporto Santos-Dumont, segui de van pela BR-101 rumo ao norte do estado. Depois de pouco mais de três horas de viagem, cheguei ao destino final.

Logo percebi que fazia todo sentido haver produção de cachaça em Quissamã: o município é uma verdadeira ilha cercada por vastos canaviais. Conforme me aproximava do centro da cidade, fui compreendendo que estava diante de um lugar com uma história rica, mas ainda pouco conhecida — exatamente o tipo de lugar que o Mapa da Cachaça busca divulgar.

A história do açúcar em Quissamã

A história de Quissamã remonta ao século XVII, quando sete Capitães Militares do Rio de Janeiro receberam concessões de sesmarias, terras cedidas pela Coroa Portuguesa para incentivar a agricultura. Essas terras foram uma recompensa pelos serviços prestados na defesa do litoral contra invasores estrangeiros.

Diz a tradição que, ao chegarem à região, em 1632, os Capitães encontraram um africano entre os indígenas Goytacazes. Ele se identificou como um ex-escravo da nação angolana de Quiçama, cuja etimologia significa “fruto da terra que está entre o rio e o mar” — uma descrição que parece ecoar na geografia de Quissamã.

20110910 MdC Quissama 015 Os alambiques de cachaça de Quissamã - Rio de Janeiro

As primeiras atividades econômicas da região foram o algodão e o gado. O primeiro engenho de açúcar de Quissamã só foi construído em 1789 por Manuel Carneiro da Silva, o primeiro Visconde de Ururai. Com a crise mundial do açúcar devido à revolta dos escravos do Haiti, o preço da mercadoria subiu muito, tornando a sua produção um negócio muito rentável. No final do século XIX já havia sete engenhos em Quissamã produzindo açúcar.

A produção de açúcar transformou a cara de Quissamã. Casarões e mansões imponentes onde viviam barões e viscondes do açúcar foram erguidas naquelas terras. Diversas personalidades importantes da época, como o imperador D. Pedro II, frequentavam essa região de grande importância econômica para a Metrópole.

O Engenho Central de Quissamã

A inauguração do Engenho Central de Quissamã, em 1877, marcou uma nova era. Equipado com maquinaria francesa de uma empresa chamada Fives Lille, ele consolidou a cidade como um importante polo açucareiro. O escoamento era facilitado pelo Canal Campos-Macaé, uma obra de engenharia monumental, e por uma linha férrea de 40 km.

O objetivo principal do Engenho Central era aumentar o volume, a velocidade e a qualidade da produção com a concentração da fabricação do açúcar em um moderno engenho central. Dessa forma, os fazendeiros locais conseguiam competir com outras partes da colônia que também plantavam a cana-de-açúcar e com o mercado internacional que plantava a beterraba.

Toda essa infraestrutura foi essencial para o desenvolvimento da região. O Canal Campos-Macaé, com seus 106 km de extensão, é considerado uma das maiores obras de engenharia do Brasil no século XIX. Sua construção começou em 1844 e terminou em 1861, ligando as fazendas ao porto e permitindo o transporte eficiente da produção açucareira. Várias vezes durante minha estadia em Quissamã pude presenciar o orgulho que eles sentem pelo canal, que dizem ser o segundo maior canal artificial do mundo..

Além do canal, uma linha ferroviária com quatro locomotivas conectava as fazendas ao Engenho Central. Hoje, tanto a ferrovia quanto o engenho estão desativados, mas suas estruturas históricas permanecem como testemunhos do passado grandioso da região.

A monocultura da cana perdeu espaço com a descoberta de petróleo na Bacia de Campos, mas Quissamã ainda preserva suas raízes açucareiras. Com incentivos para a produção de cachaça, a cidade mantém viva uma tradição secular. Durante minha visita, não tive tempo de explorar as praias, lagoas e manifestações culturais como o jongo e o boi malhadinho. Também fiquei sem provar os famosos quindins e doces caseiros.

O concuso de cachaças de Quissamã

Entretanto, participei do concurso de cachaças, que reuniu produtores locais e especialistas. O evento foi uma oportunidade única para conhecer mais a fundo as cachaças do norte fluminense e trocar experiências com outros jurados. Embora ainda haja muito espaço para melhorias na produção local, ficou claro o potencial da região.

Foram oito os jurados do concurso de cachaças de Quissamã. O pesquisador da Pesagro, Arivaldo Viana, o membro da Academia Brasileira de Cachaça, Paulo Magoulas, o sommelier Leandro Batista; o cachacier, Maurício Maia; eu, representando o Mapa da Cachaça; o representante da Confraria do Copo Furado, Paulo Sérgio Revoredo; a representante do Ministério da Agricultura, Andréa Gerk; e o representante da secretaria municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Cosme Francisco Chagas.

mdc quissama web Os alambiques de cachaça de Quissamã - Rio de Janeiro

Ao todo foram avaliadas dez cachaças. A cachaça Bousquet (de Bom Jesus do Itabapoana), Barra Velha (Campos dos Goytacazes) e Fazendinha (Santa Maria Madalena) ficaram respectivamente em primeiro, segundo e terceiro lugares. Os alambiques de Quissamã (Cachaça do Zeca, Quissacana, Engenho São Miguel e CTE/Alcantilado) ficaram nas últimas colocações.

  1. Bousquet Ouro
  2. Barra Velha
  3. Fazendinha Ouro
  4. Fazenda Soledade Pura
  5. Guaribú
  6. Do Zeca
  7. São Miguel Prata
  8. Quissacana
  9. Chico Tobias
  10. Alcantilado

Saí de Quissamã com a certeza de que sua história e sua cachaça merecem ser mais conhecidas. É um destino que une tradição, cultura e uma natureza exuberante que merece atenção de quem valoriza o rico patrimônio cultural e gastronômico brasileiro.

Em 2010, Felipe Jannuzzi fundou o Mapa da Cachaça, premiado projeto cultural com reconhecimento internacional e a principal referência sobre cachaça no mundo. Felipe é um dos sócios fundadores da Espíritos Brasileiros, empresa pioneira no mercado de produção de gin no Brasil, responsável pelo premiado Virga, primeiro gin artesanal brasileiro e o único no mundo que leva doses de cachaça na receita. Desde 2021, é um dos sócios da BR-ME, empresa especializada em produtos brasileiros, como vinhos, cafés, azeites, queijos e chocolates.