A fermentação é um processo bioquímico no qual fungos microscópicos, conhecidos como leveduras, convertem açúcares simples em álcool e gás carbônico. Essa transformação é fundamental para a produção de bebidas alcoólicas como vinho, cerveja, saquê e cachaça. O principal microrganismo responsável pela fermentação alcoólica é o Saccharomyces cerevisiae, amplamente utilizado nas indústrias de alimentos e bebidas.
Na produção da cachaça, a fermentação transforma os açúcares extraídos da cana-de-açúcar em um líquido alcoólico chamado “vinho de cana“. Durante essa etapa, são gerados compostos responsáveis pelos aromas e sabores que caracterizam a bebida. Esses compostos secundários incluem ésteres, álcoois superiores e ácidos orgânicos, fundamentais para definir o perfil sensorial da cachaça.
Um fator histórico interessante é que, já no século XVII, escravos na Bahia realizavam a fermentação de derivados da produção de açúcar para obter uma bebida alcoólica para consumo próprio, chamada “vinho de cana”. Em algumas regiões, como Paraty, até hoje o caldo fermentado da cana é conhecido como “mucungo”, uma palavra de origem africana.
A fermentação é considerada uma das fases mais delicadas e decisivas da produção de cachaça de alambique. Isso ocorre porque o sabor e o aroma finais dependem diretamente das leveduras utilizadas e das condições do ambiente fermentativo, como temperatura, pH e oxigênio disponível.
Antes de iniciar a fermentação propriamente dita, o produtor precisa cultivar leveduras e criar um ambiente propício para sua multiplicação. Essa fase inicial é chamada de “preparação do pé de cuba“, quando as leveduras são alimentadas com caldo de cana e nutrientes.
A escolha das leveduras é uma decisão crucial para o produtor. Cada cepa possui características específicas, que influenciam diretamente a formação dos compostos químicos durante a fermentação, resultando em cachaças com diferentes perfis aromáticos e gustativos.
Os produtores podem optar por dois tipos principais de leveduras: as selvagens e as selecionadas em laboratório.
As leveduras selvagens ou autóctones são aquelas naturalmente presentes nos canaviais, no ambiente de produção e no próprio caldo de cana. Elas são amplamente usadas na produção artesanal de cachaça, pois conferem à bebida um caráter único e regional. No entanto, seu uso requer maior controle e experiência, já que diferentes microrganismos podem competir durante a fermentação, afetando o resultado final.
Por outro lado, leveduras selecionadas são cultivadas em laboratórios especializados para garantir maior estabilidade e previsibilidade no processo fermentativo. Algumas das cepas mais utilizadas na produção de cachaça incluem CA-11, Lallemand, CAT-1 e BG-1. Essas leveduras são escolhidas por suas características específicas, como maior eficiência fermentativa, resistência a variações de temperatura e produção de compostos aromáticos desejáveis.
Outra alternativa comum é o uso de fermento biológico fresco para panificação, sendo o mais conhecido o da marca Fleischmann. Embora inicialmente pensado para pães, ele também é utilizado por alguns produtores de cachaça devido à sua fácil disponibilidade e eficácia na fermentação alcoólica.
A preparação do pé de cuba consiste na criação de uma cultura inicial de leveduras em um ambiente rico em nutrientes. Essa cultura fermentativa é formada ao adicionar caldo de cana a um recipiente especial chamado dorna, onde ocorre a multiplicação das leveduras.
Durante 5 a 7 dias, a mistura é aerada e alimentada diariamente com caldo de cana fresco. Nesse período, as leveduras consomem os açúcares do caldo para se multiplicarem, mas ainda não produzem álcool. Quando o pé de cuba está devidamente formado, é transferido para os tanques de fermentação.
Em produções artesanais, muitas vezes o pé de cuba é feito de forma tradicional, seguindo receitas familiares passadas por gerações. Esse fermento caipira geralmente contém caldo de cana e alimentos como fubá de milho, farelo de arroz, mandioca ou soja, que fornecem nutrientes essenciais para as leveduras.
Outros ingredientes como limão e laranja azeda são adicionados para ajustar a acidez, criando um ambiente mais favorável à multiplicação das leveduras e inibindo o crescimento de bactérias indesejadas. O uso desses insumos naturais dá à cachaça um perfil sensorial mais complexo e autêntico.




Depois que o pé de cuba está pronto, o caldo de cana com Brix 15° é colocado nas dornas de fermentação. Nesse ambiente anaeróbico (sem oxigênio), as leveduras começam a consumir os açúcares e a produzir álcool e compostos aromáticos.
As condições ideais incluem:
Durante essa etapa, não se deve usar aditivos químicos para acelerar o processo ou eliminar bactérias, respeitando os métodos tradicionais de produção artesanal. Quando a fermentação termina, o vinho de cana atinge um teor alcoólico entre 7% e 12%.
As fermentações bacterianas são comuns na produção de cachaça, mas podem ser indesejadas se não forem controladas. Bactérias como Lactobacillus e Acetobacter podem competir com as leveduras e gerar compostos que afetam negativamente o aroma e o sabor da bebida.
Quando isso ocorre, a cachaça pode ficar excessivamente ácida e apresentar odores desagradáveis, como cheiro de vinagre ou manteiga rançosa. Por essa razão, o controle sanitário do ambiente e o manejo adequado das dornas são essenciais para garantir uma fermentação saudável e equilibrada.
A fermentação é o coração do processo de produção da cachaça de alambique. Mais do que uma simples conversão de açúcares em álcool, ela é uma arte que envolve conhecimento técnico, tradição e sensibilidade. Desde a escolha das leveduras até o controle das condições ambientais, cada decisão afeta o resultado final.
Com técnicas que vão do uso de leveduras selvagens ao emprego de cepas selecionadas, a fermentação molda o sabor, o aroma e a personalidade de cada cachaça, transformando um simples caldo de cana em uma bebida complexa e apreciada no mundo inteiro.
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Em 2010, Felipe Jannuzzi fundou o Mapa da Cachaça, premiado projeto cultural com reconhecimento internacional e a principal referência sobre cachaça no mundo. Felipe é um dos sócios fundadores da Espíritos Brasileiros, empresa pioneira no mercado de produção de gin no Brasil, responsável pelo premiado Virga, primeiro gin artesanal brasileiro e o único no mundo que leva doses de cachaça na receita. Desde 2021, é um dos sócios da BR-ME, empresa especializada em produtos brasileiros, como vinhos, cafés, azeites, queijos e chocolates.