Quando pensamos em marcas que simbolizam o Brasil, alguns nomes se destacam imediatamente: Havaianas, da Alpargatas; Casas Bahia; Guaraná Antártica; e nossas famosas marcas de cerveja. Outras, como O Boticário, Habib’s e Caloi, também têm um espaço reservado em nossos corações e histórias. Mas o que talvez muitos não saibam é que todas essas marcas, além de serem icônicas e genuinamente brasileiras, compartilham outro aspecto em comum: foram fundadas ou co-fundadas por estrangeiros radicados no Brasil.
Essa curiosa coincidência nos leva a refletir sobre como a contribuição estrangeira tem moldado o sucesso de diversas áreas no país, ajudando a valorizar nossa cultura de formas que muitas vezes nós, brasileiros, não conseguimos enxergar de imediato.
A presença de estrangeiros valorizando a cultura brasileira não é novidade. Na fotografia, por exemplo, temos nomes como Pierre Verger e Thomaz Farkas, que imortalizaram aspectos únicos do Brasil com seus trabalhos, apesar de seus sobrenomes parecerem tão pouco “brasileiros”. Até o famoso dicionário Houaiss, referência na língua portuguesa, carrega influências estrangeiras em sua concepção.
Esse padrão, onde “olhares de fora” capturam e amplificam aspectos da nossa cultura, também se reflete no universo da cachaça.
A cachaça, símbolo da brasilidade, tem conquistado o mundo com sua autenticidade e riqueza de sabores. No entanto, ao entrar mais a fundo nesse universo, notei algo intrigante: estrangeiros têm se mostrado grandes embaixadores dessa bebida, investindo em sua valorização e marketing em mercados internacionais com uma dedicação que, muitas vezes, supera a de alguns brasileiros.
Marcas como Leblon, Yaguara, Avuá, Abelha e Novo Fogo são exemplos disso. Fundadas ou lideradas por executivos estrangeiros, essas empresas têm ajudado a contribuir para o sucesso da cachaça no exterior, promovendo-a como um produto premium, digno de estar ao lado de destilados mundialmente consagrados, como o uísque, rum, gin e o tequila.
Embora isso possa parecer uma ameaça à autenticidade brasileira, também representa uma oportunidade para reflexão. Afinal, enquanto algumas marcas nacionais exportam cachaça como commodity – muitas vezes a granel, perdendo a identidade no processo –, essas empresas lideradas por estrangeiros têm investido em branding, storytelling e experiências que realçam a origem brasileira da bebida.
Além de estratégias de comunicação bem estruturadas, essas marcas investem fortemente em design, criando embalagens sofisticadas e atraentes que posicionam a cachaça como um produto premium. Essa atenção aos detalhes, muitas vezes subestimada no mercado nacional, é fundamental para destacar a cachaça em um mercado global competitivo.




O relatório Brands Reports ressalta o curioso contraste entre a imensa popularidade da cachaça no Brasil e sua recepção moderada no mercado internacional. Enquanto os brasileiros consomem duas vezes mais cachaça do que o mundo consome gim, a presença global da bebida ainda é limitada.
Isso se reflete no desempenho do coquetel mais emblemático da cachaça, a Caipirinha, que caiu 13 posições no ranking dos coquetéis clássicos mais vendidos nos melhores bares do mundo, ocupando agora o 45º lugar. Apesar de 85% dos bares analisados terem ao menos uma marca de cachaça em seu portfólio, apenas 39% contam com três ou mais rótulos, destacando a percepção de que a demanda, embora presente, não é significativa e pode estar em declínio.
Entre as dez marcas mais bem avaliadas, seis delas se destacam com investimentos de sócios empreendedores estrangeiros independentes: Avuá, Abelha, Capucana, Yaguara, Magnífica e Novo Fogo. Por outro lado, Leblon e Sagatiba pertencem atualmente a grandes multinacionais, Bacardi e Campari, respectivamente, enquanto Velho Barreiro, Pitú e cachaça 51 são representações de grandes indústrias nacionais.
A Leblon mantém sua posição no topo pelo terceiro ano consecutivo, impulsionada por uma estratégia internacional robusta, especialmente após sua aquisição completa pela Bacardi em 2015. Com presença marcante nos Estados Unidos, Europa e Ásia, a marca consolidou-se como referência em cachaças premium nos melhores bares do mundo. Já a Cachaça 51 ocupa o segundo lugar em volume e valor, graças à sua popularidade no Brasil e à excelente relação custo-benefício, sendo uma das três cachaças mais pedidas em 31% dos estabelecimentos avaliados.
No segmento de cachaças artesanais e sustentáveis, marcas como Abelha, Yaguara, Novo Fogo, Magnifica, Avuá vêm ganhando relevância. Representantes de uma abordagem mais orgânica e independente, esses rótulos conquistam espaço em bares renomados globalmente, mesmo sendo minoritários no vasto mercado doméstico.
Outra frente em que os estrangeiros têm se destacado é na coquetelaria. Eles não apenas introduzem a cachaça em bares de renome internacional, mas também exaltam dois coquetéis clássicos que levam a bebida como protagonista: a caipirinha e o rabo de galo. Ambas as criações foram reconhecidas pela International Bartenders Association (IBA), reforçando o prestígio da cachaça no cenário global.


Esses coquetéis não apenas mantêm a tradição brasileira viva, mas também servem como porta de entrada para que novos públicos descubram a versatilidade da cachaça em drinks autorais e clássicos. Isso solidifica sua posição como destilado de destaque, comparável a uísques, runs e tequilas renomados.
Uma estratégia moderna adotada por essas marcas estrangeiras é o investimento em ready-to-drinks (RTDs) – coquetéis enlatados ou engarrafados, prontos para consumo e geralmente com baixo teor alcoólico. Essa abordagem facilita o acesso do consumidor à cachaça, especialmente em mercados onde há menos familiaridade com o destilado.
Ao introduzir bebidas práticas, como caipirinhas engarrafadas ou combinações leves e refrescantes com cachaça, essas empresas criam um caminho mais acessível para o público experimentar o destilado brasileiro, fomentando seu consumo de maneira descontraída e versátil. Isso é particularmente eficaz para conquistar as gerações mais jovens, que buscam praticidade e inovação no consumo de bebidas.

Uma característica notável das marcas de cachaça voltadas para o mercado externo é o compromisso com a sustentabilidade. À medida que consumidores internacionais se tornam mais conscientes sobre o impacto ambiental e social dos produtos que consomem, os princípios de ESG (Environmental, Social, and Governance) ganham protagonismo. Isso inclui a preferência por produtos orgânicos e práticas que respeitam tanto o meio ambiente quanto as comunidades locais envolvidas na produção.
Muitas dessas marcas de cachaça já nascem com a sustentabilidade como um pilar central, implementando processos que minimizam resíduos, utilizam fontes de energia renovável e preservam os recursos naturais. Além disso, há um cuidado especial com a certificação de produtos orgânicos, uma demanda crescente em mercados como Europa e América do Norte.


O compromisso vai além do ambiental: marcas pensadas para o exterior frequentemente buscam impactar positivamente as comunidades locais, criando empregos, promovendo o comércio justo e respeitando tradições centenárias no cultivo da cana-de-açúcar e no processo artesanal de produção da cachaça.
Esse posicionamento sustentável não é apenas uma estratégia de marketing, mas uma exigência real do mercado global, que valoriza marcas transparentes e responsáveis. Assim, a sustentabilidade se torna um diferencial competitivo, permitindo que a cachaça conquiste seu espaço como uma bebida premium em mercados mais exigentes.
Essa valorização por estrangeiros levanta uma questão: será que deveríamos nos preocupar com marcas “pseudo-nacionais” promovendo a cachaça no exterior? Ou seria mais estratégico aprender com elas e replicar suas práticas para fortalecer nossas próprias marcas?
Olhando para a história de marcas 100% brasileiras, vemos que o sucesso é possível. Exemplos como Germana, Sapucaia, Princesa Isabel, Pindorama, SôZé, entre outras, mostram que a cachaça tem força e qualidade para competir globalmente. Porém, muitas vezes falta o investimento em marketing e inovação que vemos nas marcas com capital estrangeiro.
Ainda há tempo de resgatarmos a liderança no mercado da cachaça – e, para isso, precisamos entender que valorizá-la é também valorizar a cultura e a identidade do Brasil. Marcas nacionais têm a vantagem de poder contar histórias autênticas e ricas, conectando-se emocionalmente com consumidores no Brasil e no mundo.
Os exemplos de empresários visionários como Luiz Seabra, da Natura, e Amador Aguiar, do Bradesco, mostram que, com foco e inovação, o Brasil tem capacidade de liderar em qualquer setor. No caso da cachaça, marcas como Weber Haus, apesar do nome alemão, têm provado que é possível competir com excelência no mercado premium, destacando-se inclusive em rankings internacionais e competindo num mercado concorrido, mas sempre em busca de novidades.
O papel dos estrangeiros na valorização da cachaça não precisa ser encarado como um problema, mas como um aprendizado. Eles enxergaram uma oportunidade – e contribuem para abrir o mercado lá fora.
No fim das contas, o sucesso da cachaça – seja com marcas estrangeiras ou 100% nacionais – é uma vitória para o Brasil e para a cachaça. Afinal, cada garrafa exportada leva um pedacinho da nossa cultura para o mundo e, se a bebida tem qualidade, ajuda a difundir os valores do destilado nacional. A pergunta que fica é: estamos prontos para assumir o protagonismo nesse mercado?
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Renato é publicitário e mestre em Comunicação pela USP. Escritor, lançou “De Marvada à Bendita” em 2011. Colaborou com o Mapa da Cachaça e coordenou um projeto de branding para a cachaça na Oz Estratégia + Design. Atua há mais de 15 anos com estratégia de marca.
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