Em Jaú, no interior de São Paulo, onde a história se entrelaça com a tradição das grandes propriedades de café e cana, a quinta geração de uma família tradicional encontrou na centenária Fazenda Santana do Mandaguahy o cenário ideal para uma jovem e promissora produção de cachaça de alambique
A jornada de Francisco José Almeida Prado de Castro Valente na produção da cachaça Mandaguahy começou de maneira inusitada: nas viagens de carro para a faculdade. Durante os trajetos entre Jaú, no centro do estado de São Paulo, até a cidade em que cursava Direito, ele costumava alternar o veículo com uma colega cuja família produzia cachaça na região. Na época, o carro rodava movido a etanol fabricado na propriedade da colega, e essas conversas despertaram em Francisco a curiosidade sobre o processo de produção de cachaça.
Quanto mais ele aprendia sobre a produção, mais percebia que poderia incrementar a produção já instalada de cana da Fazenda Santana do Mandaguahy, propriedade de sua família há cinco gerações. A bucólica fazenda, fundada em 1858 e tradicionalmente voltada à produção agrícola, já havia passado pelos ciclos do café, gado de elite e da cana de açúcar, mas nunca havia se dedicado formalmente à cachaça.
Em duas décadas produzindo cachaça, a Mandaguahy tem um dos portfólios mais prolíficos de São Paulo
O nascimento da cachaça Mandaguahy
A ideia de Francisco montar um engenho surgiu como uma forma de alternar suas atividades. Na década de 1980, seu pai chegou a considerar investir na produção de cachaça, mas acabou desistindo pelas condições da época, deixando apenas a vontade no filho.
Em 2004, Francisco, determinado a realizar seu sonho de montar um engenho na fazenda herdada por sua mãe do avô, convidou seus irmãos para a empreitada. Apesar do apoio materno, apenas Francisco perseverou, e o alambique se tornou realidade naquele mesmo ano, marcado também pelo nascimento de seu segundo filho.
Assim, o que começou como um projeto esquecido e ganhou força nas conversas durante as caronas, transformou-se na cachaça Mandaguahy, uma expansão natural dos canaviais bem cuidados que cercam o casarão de mais de 160 anos da centenária fazenda, quase tão antiga como a própria cidade.
“Eu percebi que, além de diversificar a produção, poderíamos agregar valor à nossa cana e produzir uma cachaça de qualidade no estado de São Paulo. A região é tradicionalmente canavieira e o alambique seria uma boa alternativa. Temos a melhor cana, a melhor tecnologia, por que não fazer também uma boa cachaça?”,
conta Francisco.
Um passeio pela história e sabores brasileiros
Na cachaça Mandaguahy, os visitantes podem se deparar com a arquitetura da centenária propriedade e as construções mais recentes, como o novo alambique. Além da história, a experiência sensorial também é um dos destaques.
A Fazenda Mandaguahy começou sua história em 1858
Os visitantes podem degustar cachaças envelhecidas em madeiras nobres brasileiras, como jatobá, jequitibá-rosa, castanheira, amburana e amendoim, e comparar as diferenças sensoriais entre as espécies de cabreúva e bálsamo (Myroxylon balsamum e Myrocarpus frondosus), ambas utilizadas por Francisco no processo de maturação, bem como o carvalho europeu e o americano.
“Desde o começo, nosso propósito foi trabalhar com madeiras brasileiras. O jatobá, por exemplo, era uma madeira que tínhamos na fazenda. O amendoim, fui buscar para produzir uma cachaça branca para o irmão mais velho da minha mãe, e para minha surpresa, depois de um período de um ano de envelhecimento saiu uma cachaça amarela, muito gostosa, que continuamos a produzir”.
Diversidade nos canaviais da cachaça Mandaguahy
A diversidade também está presente nos canaviais da cachaça Mandaguahy. A fazenda cultiva algumas variedades de cana-de-açúcar, selecionadas ao longo de duas décadas com suporte de agências de tecnologia e institutos de pesquisa paulistas. O resultado foi uma combinação de variedades da gramínea com ciclos distintos, garantindo uma produção equilibrada de cachaça.
“Essa é uma preocupação que temos na Mandaguahy. Usamos quatro variedades que se diferenciam pelo ciclo precoce, normal e tardio. Com isso, conseguimos estender a safra por um período mais longo, de maio a dezembro, sempre colhendo e moendo uma cana no auge do seu pico de maturação”, explica Francisco.
Francisco acredita na importância da variedade da cana para a diversidade sensorial da cachaça
O impacto do clima na produção de cachaça
A região de Jaú está inserida no ecossistema da Mata Atlântica, caracterizado por colinas de relevo moderado e um clima quente, com invernos secos. Nos últimos dois anos, a oscilação climática tem representado um grande desafio para os produtores locais, com períodos de estiagem severa seguidos por chuvas intensas e aumento na ocorrência de incêndios. Essas condições afetam diretamente o desenvolvimento e a qualidade da colheita.
Apesar desses desafios, Francisco acredita que a diversidade e a adaptação das variedades de cana cultivadas na propriedade são essenciais para a resiliência da produção, sendo fatores-chave que garantem a qualidade produtiva e fornecem à cachaça Mandaguahy um diferencial.
“Eu acredito que cada cana tem suas diferenças, e penso que, neste ponto, a cana é parecida com a uva: cada variedade influencia na produção da cachaça”.
Sustentabilidade e fermentação natural para a cachaça
Hoje, a cachaça Mandaguahy produz cerca de 10 mil litros por ano, sempre prezando pela qualidade e pelo respeito ao meio ambiente, iniciando com o corte manual da cana crua que imediatamente é levada a moagem para extração do caldo, e seguindo para fermentação e posterior destilação.
Toda essa dedicação no manejo vai de encontro com os ideais de Francisco, que busca mostrar o potencial da produção de cachaça de alambique de qualidade desta região paulista. Como produtor ele acredita que o terroir – a influência de fatores naturais (solo, variedade da cana, clima) e humanos – fazem toda diferença para o produto final.
A destilação ocorre em alambique de cobre com fogo direto, aproveitando-se apenas o “coração”, ou seja, a parte nobre do destilado. E, apesar do uso de fogo, a produção busca minimizar impactos ambientais. A palha e o bagaço da cana são reaproveitados para adubação da terra e alimentação animal.
A lenha da fornalha, utilizada para aquecer a panela de destilação, provém de árvores caídas na fazenda, da reforma de cafezais, e na falta destes, de madeira de reflorestamento. O vinhoto, resíduo do processo de destilação, é utilizado na alimentação animal e como adubo para o canavial e pastagens. Assim, a produção da Mandaguahy se destaca por gerar pouquíssimos resíduos industriais.
A fermentação também segue o mesmo princípio e é feita com o método tradicional caipira, utilizando leveduras nativas da própria cana, multiplicadas no início da safra com a ajuda de substrato de fubá de milho.
O fermento caipira é parte essencial da identidade da nossa cachaça. Não utilizamos nenhum aditivo químico para auxiliar na fermentação, apenas caldo de cana fresca e fubá de milho,
destaca Francisco.
Antiga instalação nos primórdios da cachaça Mandaguahy, em 2004.Moenda, alambique e barris na destilaria da cachaça Mandaguahy. Estrutura moderna, mas seguindo as receitas tradicionais da cachaça paulista.Barris na adega da destilaria Mandaguahy em Jaú, São Paulo
Premiações e o futuro da cachaça Mandaguahy
Todos os esforços não passaram despercebidos. Logo em seus primeiros anos, a cachaça Mandaguahy foi premiada como melhor cachaça não envelhecida do estado de São Paulo no IV Concurso Paulista de Cachaça de Alambique (2008), acumulando outras medalhas e boas avaliações ao longo do tempo, como medalhas de prata no Concurso de Cachaça com Ciência promovido pelo IAC em 2018; duas medalhas de prata na ExpoCachaca 2019 e medalha de mérito sensorial na ExpoCachaça 2022, em Minas Gerais. Em 2024, levou duplo ouro no 1º Concurso Estadual de Qualidade da Cachaça Paulista, com as cachaças Mandaguahy Original e Mandaguahy Jatobá.
Duas décadas depois do início da produção, Francisco se diz realizado, inclusive por estar passando seu gosto pela fabricação a seu filho Chico, que tem se tornado parceiro nos desafios. Ele não deixou a advocacia, mas conta que na produção de cachaça o aprendizado é constante. “Com a cachaça, todo dia você aprende alguma coisa nova”. No contexto de estabelecer um alambique em uma fazenda centenária, 21 anos parece pouco. Mas dado o legado que a cachaça Mandaguahy já estabeleceu, é auspicioso imaginar seu futuro.
Com raízes firmes no passado e olhar para o futuro, a cachaça Mandaguahy segue aprimorando sua produção e mostrando que o interior paulista é referência na arte de destilar cachaça.
Ana Paula Palazi é jornalista pela PUC-Campinas, mestra em Divulgação Científica e Cultural e especialista em Jornalismo Científico pela Unicamp. Atuou por dez anos como produtora e repórter de telejornal. Foi repórter de rede em emissora afiliada da Record TV, de 2016 a 2020. É produtora de conteúdo, atuando em trabalhos sobre cachaça, inovação e empreendedorismo.
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