Em Campinas, minha cidade natal, existe um parque muito conhecido chamado Bosque dos Jequitibás. Junto com o Parque Taquaral, ele está entre os mais visitados da cidade. A presença imponente do jequitibá-rosa é tamanha que essa árvore acabou se tornando um símbolo de Campinas.
Mas foi só quando mergulhei no universo da cachaça e comecei a estudar as madeiras utilizadas na fabricação de barris que descobri a existência de outra espécie igualmente fascinante: o jequitibá-branco.

Ambas pertencem ao gênero Cariniana — o jequitibá-rosa (Cariniana legalis) e o jequitibá-branco (Cariniana estrellensis). Majestosas e simbólicas, essas árvores não só embelezam o paisagismo urbano brasileiro como também vêm ganhando espaço na tanoaria nacional. Apesar de próximas botânicamente, apresentam características distintas que influenciam de forma única o perfil sensorial da cachaça quando utilizadas no seu armazenamento.
Ainda assim, percebo que há pouca clareza no mercado da cachaça sobre essa diferenciação. Em minhas pesquisas e degustações, percebo que alguns produtores não sabem com precisão qual tipo de jequitibá estão utilizando para armazenar ou envelhecer suas bebidas.
Por isso fiquei especialmente empolgado ao conhecer a cachaça Famigerada Mansa — um blend inovador que combina, de forma consciente, cachaças armazenadas tanto em jequitibá-rosa quanto em jequitibá-branco. Um verdadeiro encontro entre duas madeiras irmãs que, quando unidas, revelam uma alquimia sensorial surpreendente.

Ao observar a coloração levemente palha, já imaginei que encontraria uma cachaça com baixa interferência da madeira. No entanto, logo no nariz fui positivamente surpreendido. Um perfume especiado, remetendo ao cravo, banana-passa e, especialmente, ao anis, tomou conta da taça — uma entrega sensorial pouco comum entre as chamadas “branquinhas”, o que me leva a crer que esse bouquet distinto é uma contribuição direta do jequitibá-branco.
O que se revelou no olfato se confirmou na boca: o toque amadeirado é sutil, mas o anis, o frescor mentolado da madeira, só acrescentam complexidade e textura à bebida. Há equilíbrio, maciez e riqueza — ao ponto de considerar que essa base já poderia ser engarrafada e comercializada por si só. Uma excelente cachaça, sem dúvida.
O jequitibá-branco, embora libere poucos compostos que alterem cor, aroma ou sabor, mostra-se ideal para o chamado “descanso” da cachaça. Ele atua mais como um afinador do que como um agente de transformação. Permite que os componentes da bebida se integrem e suavizem a percepção alcoólica, sem imprimir notas marcantes da madeira. É uma madeira da discrição.
Apesar do uso de uma dorna de grande porte (com capacidade de 10 mil litros), tratava-se de uma madeira de primeiro uso — o que explica a presença sensorial, ainda que delicada, que ela imprimiu na cachaça. O jequitibá-branco é amplamente utilizado para armazenamento, e até hoje nunca encontrei no mercado uma cachaça envelhecida em dornas pequenas dessa madeira, com menos de 700 litros. A riqueza que percebi aqui me leva a imaginar que uma versão envelhecida poderia abrir caminhos interessantes e inovadores para o mercado.

Em contraste com a sutileza do jequitibá-branco, o jequitibá-rosa assume um papel sensorialmente mais marcante. Já pela coloração, nota-se um dourado-claro mais evidente, sinal de uma maior interação com a madeira. No nariz, a cachaça se mostrou complexa e desafiadora: percebi aromas terrosos, florais intensos, frutas maduras e um toque de mel — sensações que se entrelaçavam de forma tão instigante que me vi questionando o que exatamente saía da taça. Essa riqueza aromática também se revelou na boca, deixando claro que estava diante de uma matéria-prima de grande valor, porém ainda bruta, como um diamante que aguarda lapidação.
Sou um grande admirador do jequitibá-rosa. Diferentemente do jequitibá-branco, essa madeira tem sido cada vez mais explorada por produtores em barris de menor capacidade, com resultados muito promissores. E também observo, que muitos produtores optam por utilizá-la em dornas de grande porte como etapa de descanso antes da finalização em carvalho, criando blends mais equilibrados e complexos. Há até quem compare o jequitibá-rosa ao carvalho americano — e não à toa.
Essa comparação se justifica: o jequitibá-rosa possui potencial para agregar à cachaça notas de baunilha (pela presença de vanilina), especiarias e um dulçor natural que remete a outros destilados de prestígio. A maturação nessa madeira confere corpo, maciez e uma complexidade aromática que se desdobra a cada gole, convidando à degustação atenta.
Mesmo nesta amostra, envelhecida em uma dorna já exaurida de 6 mil litros, ficou evidente a força expressiva do jequitibá-rosa e sua capacidade de transformar o perfil da cachaça branca — uma verdadeira aula sensorial sobre o poder dessa madeira brasileira.
As minhas conclusões sobre as duas amostras vão de encontro com o que me explicou Haroldo sobre como julga ser o melhor trabalho ao pensar no seu blend para produzir a Famigerada Mansa.
O jequitibá-branco é uma madeira tímida. Quando usamos barris pequenos, a cachaça tende a ficar mais ardida e fresca demais. Já em dornas maiores, de 5 a 10 mil litros, o resultado é outro — mais equilibrado, mas exige tempo. Ela perde um pouco da característica frutada e ganha corpo, arredondando com o armazenamento. É uma madeira que pede paciência. Já o jequitibá-rosa, no início, entrega notas bem florais. E com o tempo, os compostos do álcool vão se harmonizando com a madeira, criando um perfil mais integrado e complexo.
Haroldo Narciso, produtor da Famigerada


Com cor palha e tons esverdeados e brilho médio, esse blend de 24 meses no jequitibá-rosa e 24 meses no jequitibá-branco revela muito sobre as duas madeiras.
Enquanto o jequitibá-branco é preserva, o jequitibá-rosa transforma. Essa dualidade se expressa de forma elegante e precisa no blend da Famigerada Mansa. Aqui, o jequitibá-branco — e é nesse ponto que se destaca o trabalho cuidadoso do produtor Haroldo — cumpre um papel de equilíbrio: amansa a intensidade do jequitibá-rosa e ajuda a revelar suas melhores qualidades.
Na composição final, o dulçor e o floral que percebi na amostra pura do jequitibá-rosa se mostra mais contido e refinado nos aromas. As diluições com o jequitibá-branco atuam como um filtro sensorial, concentrando notas doces e envolventes, como caramelo e baunilha, sem deixar que se tornem excessivas. Num primeiro momento, no nariz, a transformação é clara e surpreendente: o perfil aromático é distinto das amostras isoladas. A cachaça evoluiu — e me deixou intrigado, quase sem entender se estava mesmo diante das mesmas bases que havia provado anteriormente.
Essa confusão logo se esclareceu no paladar. No primeiro contato, surge a assinatura do jequitibá-branco: uma especiaria fresca, limpa, que remete imediatamente ao anis. A boca fica fresca e salivante de imediato. Mas logo depois, há uma virada sensorial. O frescor dá lugar a uma picância elegante, como um toque de canela aquecendo a boca — e aí entra o jequitibá-rosa, trazendo sua força e profundidade.
Com tempo de repouso na taça, começa a aparecer mais a base do jequitibá-branco no nariz. Um frescor de ervas, de anis em harmonia com a base branca e com os doces amadeirados do jequitibá-rosa – dá para ficar bons minutos buscando as referências das madeiras.
As duas madeiras conversam no blend com harmonia, cada uma aparecendo no seu momento, como se alternassem o protagonismo em uma dança bem coreografada entre frio e calor. E ao final, quem conduz a saída é o jequitibá-rosa, deixando um retrogosto moderado e agradável de bala de canela, marcando a memória e encerrando a experiência.
Essa foi, para mim, a primeira verdadeira aula sobre as diferenças entre o jequitibá-rosa e o jequitibá-branco — e, mais do que certezas, saí com muitas novas dúvidas. Será possível desenvolver um bom jequitibá-branco envelhecido, com identidade própria? O jequitibá-rosa, submetido a uma tosta intensa, poderia alcançar a complexidade de um carvalho? E como poderíamos organizar melhor o mercado para que fique mais claro quando estamos diante de uma Cariniana — e de qual espécie exatamente?
Essa última pergunta vai especialmente aos produtores, que são os mais interessados em saber com precisão o que estão engarrafando. E expandindo o olhar para além dos jequitibás, percebo que esses questionamentos se aplicam a muitas outras madeiras brasileiras, como a amburana, o bálsamo, o ariribá, a cabreúva…
Esse é um desafio que me anima. O estudo da Famigerada me revelou com clareza as riquezas que cada madeira pode oferecer — e o quanto o conhecimento técnico dos bons mestres de adega pode transformar a cachaça. Um conhecimento que deve se apoiar tanto na experiência empírica quanto nos estudos científicos — e também na curiosidade inquieta de estudiosos, e eu me coloco nesse balaio, que seguem se surpreendendo com os valores da nossa flora.
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Em 2010, Felipe Jannuzzi fundou o Mapa da Cachaça, premiado projeto cultural com reconhecimento internacional e a principal referência sobre cachaça no mundo. Felipe é um dos sócios fundadores da Espíritos Brasileiros, empresa pioneira no mercado de produção de gin no Brasil, responsável pelo premiado Virga, primeiro gin artesanal brasileiro e o único no mundo que leva doses de cachaça na receita. Desde 2021, é um dos sócios da BR-ME, empresa especializada em produtos brasileiros, como vinhos, cafés, azeites, queijos e chocolates.
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