Foi no Bar Convent São Paulo (BCB) que Beto Vieira, da Gouveia Brasil, e Haroldo Narciso, da Famigerada, se conheceram. Desde aquele encontro, nasceu uma afinidade de ideais que rapidamente se transformou em parceria. Vieram as reuniões para discutir o fortalecimento da categoria, as trocas sobre design e produção, a ajuda mútua em vendas e distribuição. Em eventos, chegaram a dividir estandes e até defender a marca um do outro. O que poderia ser apenas concorrência virou cooperação.

Essa experiência me marcou porque mostrou, na prática, que a união só acontece quando cada marca tem clareza da sua identidade. A Gouveia Brasil vem se consolidando com seus blends em carvalho americano, representados lindamente pela Gouveia Brasil 44%. É uma linha sofisticada que, como gosta de dizer Roberto Vieira Brasil — criador da marca e pai de Beto —, é “uma cachaça de grife”.
Já a Famigerada carrega as raízes do norte de Minas Gerais, mas com uma operação estruturada em São Paulo. Haroldo buscou interpretar memórias familiares, investigar formas de produção e explorar madeiras brasileiras para criar uma identidade que traduz a alma do norte mineiro com a força comercial da capital paulista. A Famigerada Imburana, além de saborosa, é uma verdadeira aula líquida: fala de madeira e de sertão, de botânica e inovação — ao ser envelhecida em um barril que antes maturou cerveja —, e também do legado indígena na história da cachaça.
Quando observo essa parceria, penso nos números do setor: de acordo com o Anuário da Cachaça 2025, o Brasil tem 1.266 estabelecimentos registrados produzindo cachaça e 9.532 marcas ativas. Mas será que temos mercado para milhares de marcas fragmentadas? Ou não seria mais estratégico termos algumas centenas de marcas fortes, unidas e complementares, capazes de representar regiões, estilos e identidades próprias?
Quantos produtores de fato têm uma estratégia de comunicação? Quantos investem na construção de suas marcas? Quantos conseguem transformar sua origem e identidade em vantagem competitiva?
Acredito que essas são perguntas fundamentais porque, em qualquer mercado de destilados, a construção de marca é o ativo mais caro — e também o mais valioso.
Eu tenho aprendido muito com Beto e Haroldo, com a Gouveia Brasil e a Famigerada. No esforço individual de cada um em construir suas marcas, a união se transforma em um esforço de construção de categoria da cachaça de alambique. E o primeiro vem antes do outro: são marcas fortes que criam uma categoria forte — não existe outro caminho.
Em alguns momentos, porém, percebo no mercado da cachaça uma visão equivocada: a de que seria preciso levar ao consumidor uma “mensagem unificada” sobre o que é cachaça de alambique, como se a categoria pudesse ser envelopada sob um grande guarda-chuva. E a ideia de que uma categoria inflada artificialmente vai beneficiar seus participantes – não vai. Para isso, surgem campanhas generalistas e até investimentos milionários em iniciativas que dificilmente darão certo. Por quê? Porque diluem a riqueza da diversidade em um discurso único e raso, que pouco conecta com quem realmente importa: o consumidor.
Ao invés de explicar para o consumidor “o que é cachaça de alambique” em termos genéricos, precisamos contar o que é uma autêntica cachaça do Brejo Paraibano, de Salinas, de Paraty ou do Circuito das Águas Paulistas. E isso só é possível quando cada marca se reconhece como representante de um estilo, de uma região, de uma identidade — e assume essa comunicação.
Não me entendam mal: acho fundamental levar informação e conhecimento sobre a cachaça para o público — afinal, é o que fazemos aqui no Mapa da Cachaça. Mas existe uma visão no setor que, no fundo, subestima o consumidor: acreditar que o discurso técnico sobre categoria seja suficiente para fortalecê-la. Distinções como alambique x coluna, artesanal x industrial, ou até mesmo artesanal x alambique, são relevantes e precisam ser explicadas — mas em conteúdos didáticos, não como estratégia de construção de marca ou de categoria. O que realmente importa, no fim das contas, é a experiência de consumo e a conexão emocional que o consumidor cria com uma marca.
É justamente aqui que Gouveia Brasil e Famigerada se destacam: cada uma entende seu papel, investe na sua própria identidade, nas suas experiências com o consumidor e, ao mesmo tempo, se unem em prol da categoria. A diversidade, nesse caso, deixa de ser fragmentação para se tornar estratégia coletiva e complementar.
Existem outros exemplos notáveis de colaboração no mercado da cachaça. A união entre as marcas Companheira e Estância Moretti, do Paraná, por exempo, ajudou a colocar Jandaia do Sul no concorrido mapa das marcas de cachaças. As duas atuam lado a lado em eventos por todo o país, desenvolveram blends em parceria com a mestre de adega Raquel Bonicontro — explorando o carvalho, mas também valorizando madeiras brasileiras — e ainda se mobilizam para realizar o Festival da Cachaça de Jandaia do Sul, fortalecendo a identidade local.

Por outro lado, também se percebe como a falta de união pode criar barreiras. No Festival da Cachaça de Paraty desse ano, dos seis produtores da cidade, apenas dois participaram devido a divergências em relação ao formato do evento — críticas que compartilho também, mas que ficam para outro texto. Paraty é um exemplo de identidade consolidada e marcas localmente fortes que devem se unir para se tornarem ainda mais relevantes num cenário nacional, cada uma com sua trajetória, mas carregando a bandeira dos valores da cidade que é sinônimo de cachaça.
E me pergunto: estamos prontos, como categoria, para enxergar que o futuro da cachaça depende de marcas que investem na construção da sua identidade e de alianças inteligentes que nos tornem mais fortes juntos?
Enquanto pensamos nas respostas, trago a receita do coquetel que exemplifica a parceria entre Famigerada e Gouveia Brasil. Ela foi criado pelo bartender Gutierry Alves e leva o Jeni, licor de jenipapo da Famigerada e a Porto do Vianna Umburana, uma das mais recentes cachaças lançadas pela Gouveia Brasil.

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Em 2010, Felipe Jannuzzi fundou o Mapa da Cachaça, premiado projeto cultural com reconhecimento internacional e a principal referência sobre cachaça no mundo. Felipe é um dos sócios fundadores da Espíritos Brasileiros, empresa pioneira no mercado de produção de gin no Brasil, responsável pelo premiado Virga, primeiro gin artesanal brasileiro e o único no mundo que leva doses de cachaça na receita. Desde 2021, é um dos sócios da BR-ME, empresa especializada em produtos brasileiros, como vinhos, cafés, azeites, queijos e chocolates.
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